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HEIDEGGER E O OTIMISMO DA TÉCNICA

Heidegger e o otimismo da Técnica: Texto

“Permanece, portanto, correto: também a técnica moderna é meio para um fim. É por isso que a concepção instrumental da técnica guia todo esforço para colocar o homem num relacionamento direito com a técnica. Tudo depende de se manipular a técnica, enquanto meio e instrumento, de maneira devida. Pretende-se, como se costuma dizer, ‘manusear com espírito a técnica’. Pretende-se dominar a técnica. Este querer dominar torna-se tanto mais urgente quanto mais a técnica ameaça escapar ao controle do homem”.
— M. Heidegger, “A questão da técnica”, 1953.


O filósofo hermenêutico da Floresta Negra, Martin Heidegger (1889-1976), pôs em questão a visão otimista contemporânea da técnica moderna e toda sua dimensão ontológico-existencial com seu método fenomenológico-hermenêutico – cuja aplicabilidade situa-se de fundamento e potência para este texto que transcende o entendimento da técnica como simples meio, para um fim, na instrumentalidade de uma época em que impera a causalidade. O filósofo e psicanalista alemão Erich Fromm (1900-1980) ressalta que o espírito de orgulho e otimismo distingue a cultura ocidental dos últimos séculos: “orgulho da razão como instrumento do homem para entender e dominar a Natureza; otimismo quanto à satisfação das mais agradáveis esperanças da humanidade, a consecução da felicidade máxima para o maior número” [1]. Fromm também rememora, como grave advertência, que este mesmo homem que domina a matéria, que desenvolveu tantos meios inovadores para domínio e controle, “[...] tornou-se enleado em uma teia desses meios e perdeu de vista o fim que lhe dá significado – o próprio homem” [2]. O otimismo científico para com a técnica será questionado a seguir.


CRÍTICA DO OTIMISMO


Uma visão otimista como esta, contemporânea por excelência, de que certamente vive-se no melhor dos mundos possíveis, dada sua igual possibilidade de previsibilidade e determinação de todos os fatos, aparenta poder ser abatida por terríveis sofrimentos e manter-se-á em plena firmeza. Assim tentou convencer com sua filosofia otimista, Dr. Pangloss, o filósofo, ao médico Tiago que trata-lhe de uma doença às custas de Cândido, o aprendiz de otimista, personagens do conto satírico Cândido, ou O Otimismo de Voltaire (1694-1778), publicada em 1759 cuja visão diante dos homens e do mundo não o era, por inteiro, otimista. Responde, portanto, Tiago, ao argumento de Pangloss de que tudo corria bem, apesar de estar à beira da morte, de ter sido feito escravo por piratas, de ter sido levado à forca pela Inquisição, agredido e mutilado por salteadores: “Precisam aceitar, dizia, que os homens corromperam um pouco a natureza, pois eles não nasceram lobos, tornaram-se lobos. Deus não lhes deu nem canhão de vinte e quatro nem baionetas, mas eles fizeram baionetas e canhões para se destruírem” [3].

No conto de Voltaire, a visão otimista de Cândido, impregnada da filosofia otimista de Dr. Pangloss, levou-o, junto de seu mestre e companheiros de desventuras pelo mundo, a arrefecerem-se numa chácara. Após experimentarem um longo período de tédio e discussões inúteis, concluíram que deveriam se afastar dos acontecimentos mundanos e trabalhar sem raciocinar como “[...] o único meio de tornar a vida suportável” [4]. Dentre as ocupações que cada personagem se empenhou em realizar como confeitaria, bordado, costura, marcenaria e agricultura, Pangloss, que dedicava-se à jardinagem junto de Cândido, insistia em sua metafísica otimista na penúltima fala do livro:


– Todos os acontecimentos estão encadeados da melhor maneira possível. Pois, ao fim e ao cabo, se você não houvesse sido expulso de um belo castelo com pontapés no traseiro por causa do amor pela senhorita Cunegunda, se você não se houvesse envolvido com a Inquisição, se não houvesse percorrido a América a pé, se não houvesse perdido todos os seus carneiros do bom país do Eldorado, não estaria aqui comendo cidra em conserva e pistaches [5].


E, em resposta, já com certo enfado do otimismo metafísico do mestre, acatando o trabalho sem raciocínio na propriedade rural e atento ao manuseio dos instrumentos do próprio trabalho, Cândido encerra: “Está bem dito, respondeu Cândido, mas é preciso cultivar nosso jardim” [6].


A crítica ao otimismo reinante na modernidade pode ser encontrada sobre uma bigorna, submetida às duras marteladas da jovem filosofia de Nietzsche (1844-1900) em seus anos de professor de Filologia na Universidade de Basileia. Dirá o alemão que o pessimismo é o solo fértil em que floresce a tragédia, enquanto experiência culminante de um viver sentimental, pleno, fantasioso e oposto à técnica. É, portanto, o pessimismo, uma “[...] propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o problemático da existência, devido ao bem-estar, a uma saúde transbordante, a uma plenitude da existência” [7], o que torna o pessimismo, de imediato, um sinal de abundância de saúde do qual, segundo Nietzsche, os gregos gozaram em sua época dourada e resplandecente.


Assim, o pessimismo pode introduzir a questão da existência e a tragédia pode resolvê-la. No entanto, é preciso confrontar as contradições do existir ao invés de negá-las, como o faz a filosofia moral, ou busca saná-las com estruturações puramente racionais, como o faz a metafísica. A perspectiva estética e intuitiva caracteriza o homem trágico e dionisíaco: torna-o gênio e o faz descomunal diante do otimismo que governa o positivismo científico contemporâneo e torna o homem uma figura decadente.


A ESSÊNCIA DA TÉCNICA


A abertura de um caminho para o pensar que Heidegger propõe em A questão da técnica [8] pode ser compreendida como uma questão do otimismo positivista em solo pessimista de atitude crítica para a eclosão da um solução ontológica na tragédia. Dentre as várias advertências e apontamentos vinculados a Pre-sença (dasein) e seu abrir-se ao ser dos entes, a técnica é apontada num momento inicial em uma compreensão mediana denominada “determinação instrumental e antropológica da técnica”, em que a técnica é um meio e instrumento para um fim. O fim como efeito do meio e este pela causa levam Heidegger a questionar a causalidade e a verificar que ela responde pelo dar-se algo em sua compreensão utilitária. Mas na essência grega para a causalidade, esta torna-se um deixar-viger. O deixar-viger, fenomenologicamente, é um levar alguma coisa a aparecer, um pleno advento do vigor. O deixar-viger é pro-dução, em grego, poiesis. A causalidade, portanto lança-se no âmbito da criação e do desvelo ou desencobrimento de algo vigente. Chega-se, por fim, à noção grega aletheia, que designa o desvelamento. Assim conclui Heidegger num momento crucial de sua obra:


Questionamos a técnica e chegamos agora à ἀλήθεια. O que a essência da técnica tem a ver com desencobrimento? Resposta: tudo. Pois é no desencobrimento que se funda toda a pro-dução. Esta recolhe em si, atravessa e rege os quatro modos de deixar-viger a causalidade. À esfera da causalidade pertencem meio e fim, pertence a instrumentalidade. Esta vale como o traço fundamental da técnica. Se questionarmos, pois, passo a passo, o que é propriamente a técnica conceituada, como meio, chegaremos ao desencobrimento. Nele repousa a possibilidade de toda elaboração produtiva [9].


Assim, a técnica é uma forma de desencobrimento, deixando de ser, como na conceituação moderna do termo, simples meio de obtenção de algum fim ou resultados. Retornando ao significado da palavra técnica, Heidegger encontra dois sentidos fundamentais: partindo de techné que constitui o fazer, desde a habilidade artesanal às belas-artes que conduzem à pro-dução, sendo, portanto algo poético; e unindo a techné ao uso corrente do tempo de Platão, somada a palavra epistéme que elevam o sentido de conhecimento. Uma vez que o conhecimento provoca uma abertura e assim desvela, retorna-se ao desvelamento: o âmbito em que acontece a verdade. A advertência basilar de Heidegger reside na compreensão da técnica moderna:


O desencobrimento dominante na técnica moderna não se desenvolve, porém, numa pro-dução no sentido de ποίησις. O desencobrimento, que rege a técnica moderna, é uma exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia [...] Era diferente o campo que o camponês outrora lavrava, quando lavrar ainda significava cuidar e tratar. O trabalho camponês não provoca e desafia o solo agrícola [10].


A essência da técnica está repousada na com-posição, do composto alemão Ge-stell que pode tanto implicar em algo técnico como uma montagem, um esquema, um sistema ou alguma organização compartimentada, como no seu vigor verbal no alemão stellen, traduzido como pôr e que indica um desencobrimento ou desvelo no sentido grego. Este repouso da essência da técnica na com-posição oferece o perigo, não um perigo: o perigo do equívoco no desencobrimento e da má interpretação que indignifica e desencanta.  A visão do homem e do mundo como dis-ponibilidade, do alemão bestand, que o põe numa relação de utilidade, exploração e correta aplicação, para Heidegger, é um instante derradeiro da decadência do homem: “E é justamente este homem assim ameaçado que se alardeia na figura de senhor da terra. Cresce a aparência de que tudo que nos vem ao encontro só existe à medida que é um feito do homem” [11]. O homem não se encontra consigo mesmo, mas com a busca da com-posição. Desta forma, a ameaça que paira sobre o homem não provém de suas máquinas que podem ser realmente mortais, mas a “[...] possibilidade de se poder vetar ao homem voltar-se para um desencobrimento mais originário e fazer assim a experiência de uma verdade mais inaugural’” [12].


A proximidade e singeleza da arte para os gregos em seu termo téchne era um desencobrimento pro-dutor pertencente à poiesis. A poesia era um último desvelo que atravessava toda arte do belo. Heidegger pensa sobre a essência da técnica como o vislumbrar da possibilidade de um perigo, mas também com a de uma salvação que pode provir da essência poética da técnica. O poético, diz Heidegger, atravessa toda arte com seu vigor. Finalmente, portanto, com a abertura para a questão da técnica, atingindo a essência da técnica, o homem encontra-se tomado por um apelo de libertação proposto pela questão que surge da aproximação com o perigo e que erige e faz brilhar caminhos para a salvação.

Notas


[1] FROMM, Erich. Análise do homem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 13.


[2] Ibid. p. 14.


[3] VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. Trad. de Roberto Gomes. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 19.


[4] Ibid. p. 131.


[5] Ibid. p. 132.


[6] Ibid. p. 132-3.


[7] NIETZSCHE, Friedrich W. A filosofia na era trágica dos gregos. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 14.


[8] HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: _____. Ensaios e conferências. Trad. de Emmanuel C. Leão, G. Fogel e M. S. C. Schuback. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.


[9] Ibid. p. 17.


[10] Ibid. p. 19.


[11] Ibid. p. 29.


[12] Ibid. p. 31.

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