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O GUIA DA FUGA DO INFERNO: UM PREFÁCIO À "FUGA DO INFERNO" DE NICOLAE SOFRAN

"Nicolae Sofran é um homem direto e franco, de cenho penetrante e olhar vívido que se orgulha de sua origem humilde campesina em uma Romênia livre. Qual a origem e razão de tantos dos seus apelos em seus livros à consciência ingênua que crê em utopias internacionalistas? Esta obra autobiográfica, agora em sua edição revisada, melhorada e prefaciada por J. O. Bilda com apêndices dissertativos e fotografias inéditas do acervo pessoal do autor, nos oferece um poderoso testemunho em primeira mão repleto de detalhes tortuosos e apavorantes das articulações e desmembramentos reais do regime socialista imposto sobre a Romênia – e noutras nações do Leste europeu – que perdurou oficialmente de 1944 a 1989, mas cujas sementes ainda persistem dissimuladamente pelo mundo, sobretudo às camadas intelectuais e políticas, e urgem por um enfrentamento legítimo. FUGA DO INFERNO é um relato objetivo e brutal para leitores de espírito forte."


O GUIA DA FUGA DO INFERNO[1]


Por J. O. Bilda, Org.


Esta não é uma obra acadêmica. Não se trata de uma pesquisa desenvolvida entre estantes, em que o autor se embaralha em livros e outros autores. Sequer seu autor é, ele mesmo, um acadêmico. Para ser exato, poucos ofícios o representariam menos que a arte intelectual, a técnica livresca e a atitude acadêmica.


O que em Fuga do Inferno vemos não são discussões teoréticas sobre política social e muito menos embates conceituais sobre a epistemologia do materialismo dialético. Temos aqui a rara oportunidade de apreciar em manifestação textual a completa identificação entre personalidade, autenticidade, pensamento e expressão. Aqui, a experiência direta clama por compreensão. O inverso se dá na produção acadêmica: os pressupostos guiam a palavra. Esta é já orientada por objetivos prévios, com hipóteses a serem averiguadas e terminologia apropriada. Com o testemunho vivo, a palavra se imprime cheia de hálito, palpitante, de um modo necessário. É a palavra guiada pela experiência que, por natureza, é estranha ao artificialismo da pesquisa. Temos, assim, em Nicolae Sofran, uma só manifestação entre pessoa-autor, vida-obra, pensamento-ação. Sua memória prodigiosa é prova de sulcos profundos gravados num pilar de mármore; seus adjetivos revoltados e provocações mordazes ao homem moderno ocidental são provas de afiação e composição nobres na forja de uma poderosa espada. O contraste entre as mãos fortes e os olhos serenos deste senhor que completa seus oitenta anos compõe uma bela harmonia que dá a ambiência e sustentação de todos os tristes testemunhos com o quais presenteia, como uma voz da consciência das nações, um espírito clarividente do passado sombrio, a atual geração. Uma geração de jovens e adultos por demais afeiçoada aos livros e às pesquisas, e muito pouco às mãos e ao sangue.


“Para um ocidental que não passou por tamanha infâmia, é difícil ou mesmo impossível acreditar nesta história, tal qual um saciado que não sente a fome do faminto (...) Eis a diferença radical entre o Ocidente e nós.”


Este livro autobiográfico não se propõe a declarar, mas a denunciar. Declarações podem ser prosaicas, infundadas e, não raro, arbitrárias. É incompatível com uma força objetiva e, como dito, necessária, qual é a da voz de Nicolae. A denúncia, de nuntiare e nuntius, “mensageiro”, adquire em Fuga o seu sentido mais próprio: trata-se de um núncio, um vaticínio, uma advertência franca. Quando Nicolae descreve um evento ou expressão, não enarra de algo que leu, mas que viu, ouviu, cheirou, tocou – mais precisamente, que lhe foi provocado, que lhe foi atirado, que lhe foi imposto, sempre com violência, com ódio. E também não se trata de uma experiência subjetiva individual, como os mais críticos, num sobressalto, agora apontariam. Quando escreve, p. ex., “(...) de um dia para outro, os comunistas se apropriaram das terras agrícolas, instalando nelas os kolkhozes (...)” leem-se, ou melhor, ouvem-se, para os que ainda tenham ouvidos saudáveis, o choro das crianças romenas, o clamor dos camponeses romenos, os gritos ferozes dos soldados soviéticos, o estampido de tiros ao longe de trabalhadores em um ato desesperado de resistência pelo próprio direito de ser quem são, onde são, como são – um ser-romeno, ser-próprio que se constituiu num modo específico ao longo de centenas de gerações de vidas em ebulição. Não são apenas frases digitadas sobre impressões subjetivas de uma experiência distante que buscam aclamação pública ou reconhecimento social. Nicolae gosta de enfatizar para com os seus: “Sou um homem simples”. Não se considera sequer um escritor. Seu único compromisso é consigo: e dentro de si carrega um povo inteiro. Sua voz é a voz de uma terra esmagada, de um povo dilacerado, de milhões de anônimos e obscurecidos por interesses e focos de luz estranhos. Sofran é um mensageiro de um passado ainda presente, cuja voz individual traduz a experiência de milhões – e ele só faz apenas uma exigência: que sua mensagem, e não seu autor, seja ouvida.


A literatura universal, isto é, a ficção, a obra do gênio de milhares inspirados, não nos prepara para o que encontramos em Fuga do Inferno. Com efeito, dá uma imagem muito suave da realidade de um aprisionamento eficiente como o conheceremos pelas descrições de Sofran. Não raro o leitor brasileiro mais afeito à história buscará referências no período colonial escravagista americano para confrontar detalhes e sintetizar uma avaliação. Em vão, porém. O que descobrimos no Leste não tem par na literatura disponível entre a criação imaginária do romance e os relatos historiográficos, salvo à exceção das punições escatológicas da Divina Comédia. Mas ainda assim a comparação não é justa: o inferno eterno, e não uma prisão secular, era pensado para fervorosos pecadores, dentre fraudulentos, violentos, blasfemos, luxuriosos ou um limbo para não-batizados: “Eis a estância, que eu disse, às dores feita,/Onde hás de ver atormentada gente/Que da razão à perda está sujeita.”[2] É uma estância para além dos poderes da vida, onde o corpo não se extingue porque para sempre unido ao pecado da alma. E não se trata, aqui, de quimeras de superstições cristãs medievais que mal assustariam a uma criança moderna. Aqui, a fuga é de um inferno totalmente humano, criado pelo Novo-Homem racionalista de Mordechai, e ainda pior, se comparado com o de Dante, por duas razões: primeiro, porque em Dante o castigo é apenas um e devido a apenas um pecado, conquanto infinito, ao passo que em Sofran sofrem-se diversos castigos e não se pode falar da existência de algo como um “dito, feito ou desejado contra a lei eterna”[3]; segundo porque em Dante o castigo corresponde ao pecador, segundo a ideia da infalibilidade e perfeição da justiça divina, e neste Inferno os pecadores são os algozes e os inocentes as vítimas, numa inversão horrífica dos livros do florentino: imagine-se as virgens celestiais e os anjos alados em toda sua glória e beleza serem subjugados por demônios sanguinários nas valas sujas do Malebolge, cheios de feridas purulentas, submetidos à fome devoradora, chicoteados e mergulhados “no fosso imundo”, “em tal cloaca mergulhada,/Que a sentina figura ser do mundo”[4] – esta seria a imagem correspondente a este Inferno que, espero tê-lo demonstrado, em muito supera a fantasia teológica.


Nos afastando um pouco do núcleo narrativo prisional e erguendo os olhos para o cenário político e social em questão, qual seja, a Romênia ocupada de 1944 a 1964, não podemos deixar de notar a semelhança perturbadora com as descrições do jornalista e escritor Eric Blair, conhecido por George Orwell, em sua alegoria 1984, que se passa num regime chamado Socing ou o acrônimo Ingsoc, para socialismo inglês, Coincidentemente, no ano de 1984 a Romênia completava 40 anos de dominação, e tanto há “pelo menos quarenta anos” que não se fabricavam mais cadernos como o que Winston arranjara quanto foram precisos quarenta anos para que compreendesse “que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro” do Grande Stálin.[5] Todos os elementos do regime socialista ditatorial imaginados por Orwell podem ser traduzidos à perfeição nos termos do Fuga. Vejamos: O Partido (Partido Comunista e seus aliados da Democracia ocidental) formado pela casta dos Altos (os “proletários” e a nomenclatura soviética, expressa na Romênia pelo termo origine sãnãtoasã, “origem sã”) zela pela vigilância e opera mediante telescreens ou teletelas (à falta dessa tecnologia se utilizam de vasta rede de espiões infiltrados na sociedade com nomes falsos, muitos deles civis subornados), expõe o rosto do seu Líder em cada esquina, loja ou placas (exemplos biográficos de Sofran com o rosto do camarada Stálin estampado às ruas, e, posteriormente, históricos, com o culto à personalidade de Ceaușescu após 1982), cria-se uma nova linguagem a partir da abreviação – a Newspeak, Novilíngua (uso de abreviações eufemistas como gulag, kolkhoze, Securitate, norma, criam-se nomes suaves como “programa de condução ao banheiro” para procedimentos hediondos, e a substituição de termos comuns como “senhor”, “por favor” ou “bom dia” por termos adequados como “camarada comunista” ou “viva o senhor etc. etc.”) – para evitar o “crime de pensamento” (crime de intenção qualificado pelo Art. 267 do Codul Penal romeno), suprime-se a individualidade (substituição do calendário e da dieta, proibição e controle sobre escrita e sobre relações sexuais, etc.), mantém-se a paranoia persecutória de um grupo rebelde que ameaça constantemente a perfeição organizacional do Sistema (quaisquer grupos de resistência nacionalistas, em especial o legionário de Codreanu, a Garda de fier), estipulam-se momentos de ódio coletivo contra este grupo onipresente (batizados de nazistas, a seguir a tendência criada pelo jornalista marxista Konrad Heiden, ou, mais genericamente, os “inimigos do povo”), e um sistema prisional de torturas (autoexplicativo) que buscam modificar e controlar o pensamento do infrator por meio do duplipensamento (o materialismo dialético enquanto teoria, a dialética socialista enquanto prática). Eis a definição clássica:


“Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo.”[6]


Este fragmento do romance é bem conhecido, de fato. Mas quais seriam suas consequências para além de uma reformulação no sistema de crenças da massa realmente trabalhadora e na transformação da linguagem? A realidade traga por Sofran é muito mais severa que se pode imaginar. Que se avaliem os exemplos dialéticos efetivos seguintes aos quais sugiro um termo novilinguístico: “Tudo é nosso, mas ninguém tem nada” (despropriedade); “Morte aos intelectuais! A classe trabalhadora trabalha, não pensa”; (benepensar) “(Os sovietes) gostam da traição, mas não dos traidores” (neoleal); “Ensinavam-nos até a comer pouco porque, segundo eles, ‘quem come muito são os capitalistas... Enquanto isso, víamos que os professores ficavam, a cada dia, mais gordos”; “(O trabalhador) É coagido fisicamente a trabalhar gratuitamente, o que ousadamente chamou-se de ‘trabalho voluntário’” (freeworking); “(no julgamento) tudo se passa muito rápido e formalmente, uma vez que cada preso já vem julgado pelo seu interrogador da Securitate” (neojusto); “O povo era proibido de assistir a tais julgamentos... Deu-se por aberta a sessão em nome do povo” (proletariado); “Comíamos todos juntos na fábrica a mesma miséria, mas os chefes comunistas que comiam em restaurantes privativos. Esta é a igualdade socialista.”; “Foram considerados culpados por não conseguirem nos prender ou matar. O bom e velho humanismo comunista.”; e “Tal é a fraternidade comunista: todos se odeiam por alguma razão.” (em nome da redução e simplicidade do pensamento, os três podem ser resumidos em Socideias).


A certa altura somos surpreendidos com outra referência ao mundo da poética, no entanto, de raro encanto e verdade. Lembramo-nos de Dantès e o abade Faria em Conde de Monte Cristo de Dumas pai. Dantès perde, pouco a pouco, tudo o que o distinguia dentre os homens, ao ser preso. Durante a tentativa de escavar os muros internos entre as celas para contatar um desconhecido colega de infortúnio, ouve as palavras do velho erudito: “Quem fala de Deus e de desespero ao mesmo tempo?”. O abade de notório saber, com uma biblioteca de mais de cinco mil volumes, torna-se mentor de Dantès. Vi, nesta formosa relação espiritual, a relação entre o jovem Nicolae e o Professor Ilie Ghenadie na cela dos condenados do presídio do Tribunal Militar de Timişoara em 1959.


“Dantès escutava cada uma de suas palavras com admiração: algumas delas correspondiam a idéias que ele já tinha e a conhecimentos que eram do âmbito de sua condição de homem do mar, outras referiam-se a coisas desconhecidas (...) Dantès compreendeu a felicidade que experimentaria um ser inteligente ao seguir aquele espírito elevado nas altitudes morais, filosóficas ou sociais em que tinha o hábito de planar.”[7]


Ao que, logo a seguir, pede para ser ensinado pelo professor. Mas sem o esteticismo típico da literatura, isto é, da imaginação humana, temos na versão concreta deste modelo ideal um sumo grau de beleza, posto que é um belo, como diria Sócrates, bom, e bom porque verdadeiro.


“No outro dia chegou o professor Ilie Ghenadie, já há muito tempo condenado desde a chegada do terror comunista na Romênia em 1944. (...) Contava-nos os horrores das prisões por onde passou e que foram muitas. Ele pertencia ao Movimento Legionário Romeno, organização nacionalista fundada ainda em 1927. (...) Era um homem inteligente e culto e todas as tardes nos contava sobre a luta de sua organização pelo bem do povo romeno. (...) Uma noite me disse: ‘Nicolae, quando começar alguma coisa, vá até o fim. Se eles te pegaram agora, e pode ser que te peguem pela segunda vez, tente sempre, que um dia você vai ter a sorte de escapar deste inferno comunista!” As palavras deste ilustre professor doeram-me na alma. E também foram proféticas.”


Tenho a clara impressão que, caso acolhido, ou seja, ouvido enquanto o mensageiro que é, afastado da quase onipotente maldição de Cassandra a que hoje a Intelligentsia atira aos que dela dissidem, com a suma autoridade que detém – a autoridade de alguém que sentiu o vivido às fibras da existência objetiva – que se funde com a integridade de seu caráter franco e desinteressado, Nicolae Sofran se tornará para nós, herdeiros desta terra e deste tempo, um profeta que, tendo iniciado sua jornada de vida aos fins da Guerra nas belas planícies da taciturna Romênia – que conhecemos na maior parte das vezes graças à detalhes da Transilvânia por Stoker[8] – ao estilo de um confuso e aborrecido Dante e descrente Dantès, é então guiado por um sábio e experiente Virgílio ou Faria à imagem do legionário Professor Ghenadie, e torna-se ele mesmo, para nós, hoje, com sua mais poderosa obra em sua versão definitiva Fuga do Inferno, um sábio-profeta a quem diremos: “Vai, pois nosso querer está combinado./Serás meu guia, meu senhor, meu mestre!”[9]


Brusque, 19 de junho de 2021.


Notas


[1] O texto a seguir é a transcrição do prefácio que escrevi para a nova edição de Fuga do Inferno de Nicolae Sofran, lançado neste outubro pela Epische Verlag. Nota do autor.


[2] ALIGHIERI, D. Divina Comédia. Inferno, III, 6.


[3] “Pecado, é, então, qualquer transgressão por ação, palavra ou desejo da lei eterna. E a lei eterna é a ordem divina ou a vontade de Deus, que requer a preservação da ordem natural e proíbe a violação dela. Mas qual é a ordem natural no homem? O homem, sabemos, consiste em alma e corpo; mas também em besta.” AGOSTINHO. Contra Faustum Manichaeum. XXII, 27. Tradução minha.


[4] ALIGHIERI, D. Divina comédia. Inferno, XVIII, 38.


[5] ORWELL, G. 1984. 17. ed. São Paulo: Nacional, 1984. p. 11; p. 277.


[6] ORWELL, G. Ibid. p. 36.


[7] DUMAS. O conde de Monte Cristo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 180


[8] “Durante o dia inteiro parecíamos rolar através de um país emoldurado das mais fartas e variadas belezas. Por vezes deparávamos com pequenas vilas ou castelos engastados nos cumes de elevações alcantiladas, como os costumamos ver nas litogravuras de missais antigos. (...) Em cada uma das estações do nosso trajeto notamos a presença de grupos de pessoas, às vezes mesmo pequenas multidões, todos ostentando trajes dos mais variados tipos e aspectos.” STOKER, B. Drácula. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 9.


[9] ALIGHIERI, D. Divina Comédia. Inferno, II, 47.

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