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Memórias de outro Céu e outra Terra: a jornada espiritual de um éstio-brasileiro: Imagem

MEMÓRIAS DE OUTRO CÉU E OUTRA TERRA: A JORNADA ESPIRITUAL DE UM ÉSTIO-BRASILEIRO

Este texto foi traduzido para o inglês e dividido em cinco partes para publicação digital e impressa pelo periódico da Comunidade Estoniana Internacional no Canadá, Eesti Elu. A edição impressa veio a lume com fotos que forneci de meus antepassados.

Memórias de outro Céu e outra Terra: a jornada espiritual de um éstio-brasileiro: Texto

Quando às areias brancas de uma praia sueca, em autoexílio, distante dos encantos remotos de sua Kalevan ou Lindanisa, os nomes secretos da “fortaleza” de Tallinn, com seus imaculados salões e estradas subterrâneos e seus imponentes castelos e torres de pedra sendo profanados por estrelas de sangue e hinos de morte, a poetisa Marie Under voltou os olhos para um esfumaçado sudeste e compôs versos à memória de sua triste nação.


“Os feixes de centeio estão empilhados.

Todo mundo está indo embora.

O teto da carruagem está levantado.

O viajante que vem atrás

Assim como o cocheiro à frente

Está pensativo, silencioso.


“Ninguém se demora na praia,

Nem uma só alma.

É melhor assim.

Apenas as pedras e a água,

As únicas pegadas as criam os meus sapatos.


“A gaivota chama.

É duro. E sei por quê.

O vento corta a água.

E a abelha suga da última flor,

Que balança numa fenda,

O último mel.


“E assim caminho distante

Ao longo da praia branca

Até que de repente vejo

Aos meus exploradores solitários pés

No oceano infinito.

Paraliso como uma pedra.

E me detenho, como se face a face com Deus”.

— Üksi merega, Sozinha com o Mar.


Marie é a Donzela da Ilha que caiu dum penhasco no mar e ficou para sempre perdida aos seus Pais, que a choraram. Que terá a Donzela visto no Mar?


“O que viu ela no oceano?

O que sob o mar estava brilhando?

Do mar uma espada brilhou dourada”.

— Kalevipoeg, o épico da Estônia. Canto IV.


A memória é como uma fotografia que envelhece rapidamente. Apagam-se os contornos, esfacelam-se as extremidades, desumanizam-se as expressões, distorcem-se os componentes. Não só envelhece como se deixa manchar e deformar pelo armazenamento junto a outras fotografias. Os lugares e datas se confundem, os detalhes e distinções se unem, as cores e tons se esvaem. Tudo que restará serão luz e sombra, presença e ausência, ser e não-ser, até que chegue o mais completo vazio. É então que uma luta é travada por aqueles que não se permitem deixar vencer pela opacidade do esquecimento. Tentam recuperar a cor, o aspecto, o quando, o quem. Registram o pouco que sabem, protegem o que ainda possuem, para, no final, sua maior vitória consistir, ainda, em um trabalho imperfeito.


Tal é a fotografia, tal é a memória, tais são os homens, tal sou eu mesmo. Em minha imperfeição, tudo que pretendi, desde a infância, foi descobrir uma memória que, muito embora desprovida de imagem ou som, me tornava um estrangeiro, um nostálgico, sem que pudesse suspeitar o ter perdido quaisquer fotografias ou deixado qualquer porto distante, de uma outra terra. Me refiro ao Cais Absoluto, anterior, lembrado por aqueles plenos de uma vida interior em suas horas de silêncio, como da Ode Marítima de Fernando Pessoa:


“Ah, quem sabe, quem sabe,

Se não parti outrora, antes de mim,

Dum cais; se não deixei, navio ao sol,

Oblíquo da madrugada,

Uma outra espécie de porto?”


E, no entanto, havia uma imagem, um eidos, e um porto, uma arkhé. Também uma terra imemorial de gigantes filhos de Deuses, uma brisa fria sobre pântanos verdes, um sol branco sobre campos sem fim, um sussurro que chega de negros bosques, um velho castelo, uma rocha sobre a colina, um lago prateado. Ao Norte, sempre para o Norte, jaz uma terra silenciosa, de grandes carvalhos e antigas florestas, detida sob um poderoso mar que um viajante medieval chamou balticum, um cinturão que a mantém afastada de outras nações heroicas, dos outros filhos de Deuses, das outras florestas mágicas, como se a própria Terra temesse que esses gigantes filhos de Taara, o Céu de todas as cores, a tomassem de assalto. Ah, o ingênuo temor das mães dos titãs das montanhas, das mães dos gigantes de gelo!


Nada há de mais sagrado ao descendente dos gigantes loiros da Estônia, a região dos sempre misteriosos e pacíficos Aestii de Tácito, os éstios, para além da qual, escreve, “mais longe ainda vivem os Hiperbóreos”, que a terra, a árvore, a pedra ou a água; nada o fez acender tão prontamente seu fogo interior, nada o fez reluzir em batalha como as estrelas, nem erguer suas largas espada e lança como se portasse os próprios sol e lua, senão a defesa e a conservação de sua terra e seu povo. Embora poderoso, não ama, porém, à guerra, nem à morte ou à conquista, não. Ama a vida simples e familiar à qual é incapaz de ser infiel. Ama aos pequenos insetos e animais e a todos concede voz e dignidade. Ama aos lagos tranquilos, aos rios caudalosos e aos pântanos misteriosos, sempre disposto a lhes honrar os invisíveis habitantes. Ama às plantas coloridas e às pedrinhas irregulares como pequenos presentes divinos para a sua alegria. Ama entoar velhas canções e contar velhas histórias ao redor do fogo memorial. Ama ao semelhante seu, o irmão seu, em que vê um retrato de si mesmo, e se devota às amizades perenes. Ama às coisas vivas, as coisas que crescem, as coisas que morrem, pois é um conhecedor nato da morte, da finitude e dos ciclos, e só por isso que é tão capaz de amar verdadeiramente e viver verdadeiramente. Ama tudo o que pode fazer com as próprias mãos. Ama criar, construir, inventar e produzir. Ama seu lar, mas também ama viajar, ama as distâncias, as alturas, os desafios, as profundezas, os mistérios, e é por possuir um lugar, pertencer a alguém e saber o que é, é que ama regressar ao lar.


Com que facilidade me é dado escrever sobre a alma estoniana! Basta expor a minha própria. Mas não houve fotografias no raiar de meus primeiros dias. Nem música, nem mito, nem terra, nem sabedoria. Nada obstante, um destino já me havia sido posto de cima desde então, e descobri-lo seria talvez a maior de minhas aventuras – busca de Alastor, solitário amante dos pequenos gestos da Natureza, cuja infância nutrida “por visão solene, e brilhante sonho prateado” o leva a conhecer “tudo de grande, ou bom, ou amável, que o passado sagrado em verdade ou fábula consagra”, e perseguindo aos “passos mais sagrados da natureza”, deixou ele “sua fria lareira e lar alienado para buscar verdades estranhas e terras não descobertas”.


Verdadeira jornada da alma em busca de si mesma, retorno eterno do Arthur que principia desconhecendo ao próprio destino e poder e, na luta por justiça, finda na busca do Graal; do Jasão, herói que nasce insuspeito e, ignorante de si mesmo, divisa a sombra com seu Argo em busca do Velo de Ouro; do Sigurd e do Siegfried, filho de Odin e Wotan, que, criado e educado por um estranho, faz-se num estranho para si mesmo, mas que graças à espada mágica ancestral e ao conhecimento da natureza, recupera o tesouro e conhece o amor verdadeiro e a imortalidade; do Jonas, homônimo meu, feito profeta por Yahweh, convocado sem avisos, que em ignorância tenta fugir de si mesmo mas, uma vez esclarecido de “dentro do ventre do inferno”, sai à realização de sua missão educativa e purificadora entre terras infiéis; e, finalmente, de Sohni, o Kalevide, o grande antepassado de todos os estonianos, símbolo da alma coletiva, sempre em estado de busca, seja pela honra e amor de sua mãe Linda, seja pela sabedoria e benção de seu pai Kalev, que galga obstáculos, vence combates e aprende, constantemente, com os próprios erros, com a própria espada do conhecimento, até tornar-se em sábio rei e ser, como todos os grandes heróis, imortalizado.


Eis a dura senda das almas errantes que anseiam por uma mais alta concepção de si mesmas, antes de saberem estar predestinadas – não, porém, por uma arbitrariedade transcendente ou por um futuro determinado, mas por sua própria origem, sua própria estrela, seu próprio ideal. Para os espíritos mais filosóficos, é esta a tradução mítico-tradicional da progressão necessária do Espírito conforme demonstrado nas etapas da Fenomenologia do Espírito de Hegel: o dado estado de coisas jamais satisfaz ao Espírito particular, a consciência buscadora, que anela, e por meio de um olhar puro, reines Zusehen, enquanto experiencia a natureza e o mundo dos fenômenos, num momento negativo, ela mesma aparece para si mesma, sempre outra vez, pelo estranhamento em que se perde para se ganhar, pelo reconhecimento em que se ganha para se perder, em incessante confronto dinâmico, mas a cada vez, de modo superior, enquanto se reconhece como conceito concreto, isto é, individualidade verdadeira, livre e autodeterminada, reconciliando em si mesma todas as oposições durante o rumo até o Espírito Absoluto.


“Corresponde a tal exigência o esforço tenso e impaciente, de um zelo quase em chamas, para retirar os homens do afundamento no sensível, no vulgar e no singular, e dirigir seu olhar para as estrelas; como se os homens, de todo esquecidos do divino, estivessem a ponto de contentar-se com pó e água, como os vermes. Outrora tinham um céu dotado de vastos tesouros de pensamentos e imagens. A significação de tudo que existe estava no fio de luz que o unia ao céu; então, em vez de permanecer neste [mundo] presente, o olhar deslizava além, rumo à essência divina: a uma presença no além – se assim se pode dizer”.
— Fenomenologia do Espírito, Prefácio.


É este também o Bildungsroman de Zaratustra que, inspirado pelo Sol, desce de sua montanha para instruir ao povo, aprende a inutilidade de falar a muitos e a necessidade dos poucos, torna a abstrair-se, torna a expandir-se, e nisto desenvolve seus sermões, sempre em busca de tornar-se um profeta mais eficiente do homem que virá.


“Eu próprio formo parte das causas do eterno regresso das coisas. Regressarei como este sol, como esta terra, como esta águia, como esta serpente, não para uma vida nova ou para uma vida melhor ou análoga. Tornarei eternamente para esta mesma vida, igual em ponto grande e também em pequeno, a fim de ensinar outra vez o eterno regresso das coisas, a fim de repetir mais uma vez as palavras do grande meio-dia, da terra e dos homens, a fim de instruir novamente os homens sobre o Super-homem”.
— Assim falou Zaratustra, O Convalescente.


A mais triste das despedidas não é a do amigo, do irmão, sequer a da amada, mas a despedida da própria alma, que se reparte, e se torna para sempre cindida. Esta é a despedida da semente volante nos prados, das gotas da curva ribeirinha, do orvalho das manhãs cinzentas, da fagulha cintilante que se desprende da chama para se perder no céu negro. Tal fora a despedida silenciosa e sem cerimônias, porque violenta e apavorante, de centenas de sobreviventes estonianos entre as duas primeiras décadas do século passado que, adoentados e esfomeados, ocultaram-se em embarcações dos mais variados tipos. Uma ciclópica Revolução despertara – e acordou faminta. Atravessaram briosos o Atlântico numa espécie de fuga de Tróia em chamas, Paraíso perdido ou Cartago saqueada, sem qualquer esperança de regresso, sem qualquer sinal de salvação. “Do Éden d’ontem nada mais havia”, escreveu Delfino, poeta do Sul brasileiro, “tudo é tojal, tudo é melancolia”. Assim chegaram menos de cinco centenas de estônios ao grande porto de águas verdes de Santos, em São Paulo, Brasil, meio a relatos imperfeitos e esparsos registros de memória coletiva, numa fotografia apagada, fragmentada e quase para sempre perdida. Erna Liddik Koosberg, senhora paulista estoniana, contou ao jornal Folha de São Paulo em 2008 sobre a fuga de seus pais da União Soviética e o estabelecimento na capital paulista como uma terra de oportunidades. “Eles nunca deixaram de amar a Estônia”, declara sobre os pais que falecerem sem jamais retornarem à terra natal nem vê-la liberta. Roberta Laas, jovem santista estoniana, a única radicada na cidade até 2013, ano da entrevista, contou ao portal Novo Milênio de Santos sobre a penúria que presenciou vivida pelos estonianos sob o jugo estrangeiro: “As pessoas não tinham nada, precisavam reinventar tudo”. E nestas condições chegaram os Helju, os Ummus, os Hendrikson e os Romberg à Ilha de Santo Amaro no Atlântico Sul há exatos cem anos, meus trisavós.


Nasci em 13 de junho de 1993 na maior metrópole da América Latina, São Paulo, a monstruosidade de aço e asfalto do Brasil, recebendo o ser de uma mãe mediterrânica e um pai balto-eslavo, mas com os olhos baixos e demasiado submergidos nas urgências mais imediatas e elementares da vida comum para aprender a erguê-los e me ensinar a fazê-lo; erguê-los à legitimidade de nossas origens, à dignidade de nossos nomes, à verdade de nosso coração, e à altura de meu próprio destino, já há muito eleito pela mão forte do Velho Deus, o Vana Isa Ukko, o sábio Taara, e o grande ancestral Rod, o forjador Svarog, meus dois Pais originários, mas que honro e amo como Um. E como todos os heróis que ignoraram sua real proveniência, estive diante de uma aventura solitária, enquanto naturalmente alheio ao meio cultural em que cresci. Com os anos recebi um chamado, mas que não soube interpretar corretamente, tanto por me faltar o mentor, o iniciador, quanto o conhecimento, o livro, o mapa. Errei entre valores, artes, religiões, histórias e culturas, sempre em busca do conhecimento superior, da bússola quebrada, da joia partida, do fragmento da espada, até que aquele chamado se tornou mais claro. Não encontrei o artefato mágico nem recebi a iniciação magistral, é certo, mas me foi concedido algo de maior dignidade: encontros com heróis do passado, instruções diretas de Deuses e presságios em sonhos-visões inesquecíveis. Num dia caminhei, num amanhecer dourado, entre os pauis de Harjumaa, antes de conhecê-los, quando a figura de meu próprio pai em vestes tradicionais me mostra um caminho através do Mar. Em outro, descobria ruínas de uma antiga civilização. Em ainda outros, ora percorri salões de palácios persas, ora estive na comitiva de grandes sábios, ora estive em festividades na antiga Índia à presença de avatāras, ora presenciei magníficas marchas marciais, ora ouvi velhas canções como a russa Pod rakitoju zelenoj, “Sob um salgueiro verde”. Doce é a melodia que se ouve, mas “mais ainda aquela que não se ouve”, ensinou Keats ao contemplar uma urna grega.


Retornei, por fim, à casa paterna, em busca de respostas. A maioria, no entanto, tive de buscar com as próprias mãos, conquanto guiado pelo Alto. Cruzando o limiar para o desconhecido, vencendo adversários e criando aliados, rumei para a conquista do objeto lendário, da cidade perdida, do alimento mágico, e logrei encontrar os textos sagrados, os velhos mitos, as longas histórias. E como todo antigo estônio e todo homem antigo, sou filosófico, mas não pleonástico, sensível, mas não concupiscível, religioso, mas não supersticioso. A educação liberal em Arte e Religião na juventude, a formação acadêmica em Psicologia e Filosofia na adultez, unidos ao estudo dos textos tradicionais como os Textos das Pirâmides, o Rig Veda, a Edda, os Gathas, as Epopeias, a Bíblia e outros, e a leitura, pesquisa e tradução da Sabedoria de Perun, o Livro de Veles e o Kalevipoeg me concederam o poder necessário para reaver o propósito antigo, que é o meu, que é antes de mim e que depois de mim, continuará. Se hoje sou um homem realizado, de ótima saúde física e mental, em um casamento de felicidade real, um trabalhador real, um educador e um escritor real, devotado aos valores e visão de mundo reais que são os meus, devo-o pura e completamente à conquista de meu ideal, meu universal, meu substancial mais próprio e espiritualmente verdadeiro, absoluto, superior.


 “Um dia, um vasto incêndio explodirá em ambos os lados da rocha e a derreterá, quando o Kalevide retirará sua mão e retornará à terra para inaugurar um novo dia de prosperidade para os estonianos”.
— Kalevipoeg, o épico da Estônia, Canto XX.


Assim diz a velha profecia e tais são as antigas imagens das quais sou o primeiro a traduzir e apresentar ao mundo lusófono, e um dos poucos a conhecer e um dos raríssimos a manusear sem pseudociência, sem ideologia e sem histeria neste Ocidente contemporâneo, ainda tão profunda e convenientemente ignorante sobre todo o tempo e toda a obra anterior a sua condescendente autocoroação, quando não os oculta ou tenta destruir deliberadamente como o intentaram uma vingativa bruxa Morgana, um mentiroso anão Mime, um medroso rei Pélias, um ganancioso Sarvik diante do valor humano e proteção divina de seus a princípio insignificantes antagonistas. Assim reconstituí minha memória, em todos os seus contornos, cores e textura, e assim continuarei a preservando contra o avanço do esvaziamento sobre as fotografias. Imperfeitas e envelhecidas, como tudo o que é vivo e real, de fato! Mas a cada dia menos imperfeitas e menos envelhecidas, como tudo o que quer continuar vivendo e se tornar cada vez mais real. A “grande era do mundo se inicia outra vez”, cantou Shelley em seu Hellas, os “dias dourados retornam”!


Se um homem sem memória é um homem sem personalidade, um povo sem história é um povo sem identidade, como um mundo sem mitos é um mundo sem sentido, e uma época sem tradições é uma época sem vida.


Cito de modo auspicioso aos versos finais da oração à Taara que faço todos os dias junto a uma fotografia querida de meus ancestrais em meu escritório:


Mina usun, et homne päev on parem tänasest, kui ma selleks kaasa aitan. Taara avitab!


“Eu acredito que o amanhã será melhor que o hoje se eu ajudar a torná-lo assim. E Taara ajudará!”

Memórias de outro Céu e outra Terra: a jornada espiritual de um éstio-brasileiro: Texto
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