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EM BUSCA DE SENTIDO PARA O ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO - SEGUNDA PARTE

A senda do Dasein autêntico


Finalmente, eclodimos no termo do enraizamento no povo como uma retomada autêntica do sentido do educar, não como tenderíamos a dizer: para aquele que pergunta pelo sentido do educar, mas para aquele único ente, o ser-aí humano, ao qual o educar aparece como uma questão proveniente de um certo entendimento prévio a respeito do sentido do ser. Se educar, partindo da hermenêutica do ser-aí, tem algo com cultivo e questionamento incessante, o ser-aí estudante não pode ser restringido à cega adesão de alguma interpretação cosmológica absolutamente alheia aos seus projetos existenciais, mas liberado para questionar o seu convívio, seu real legado, iluminar sua origem, e assim remover os obstáculos sedimentados para, por fim, assenhorando-se do seu destinar desconhecido, declamar erigido ao alto: “Puro saí das águas consagradas/Pronto a me alar às lúcidas estrelas [1] ”. E que estas estrelas estejam fixadas sob o mesmo céu em que repousa, desperta, ama e trabalha.


 O "Ser-aí" ou o "Ser-aí-no-mundo" ou "Existência" é a tradução para o português do termo alemão "Dasein", muito usado na filosofia como sinônimo para ser existente. É o termo principal na filosofia existencialista de Martin Heidegger. Segundo Marco Aurélio Werle (2003), em "Ser e tempo", Heidegger questiona a concepção filosófica do ser. "Que é ser?" Heidegger afirma que o ser humano é um ente destacado capaz de questionar-se possuindo compreensão do ser. Este ente é o homem, o ser-aí, o enquanto um ente que existe imediatamente no mundo.


O encaminhamento desta questão que o ser-aí se interpõe de modo a ver, desta vez com seus próprios olhos, não sem antes prover-se de cuidadosa incursão pelos meandros da tradição de pensamento em sua perniciosa condição de autoevidência, às quantas anda com o fundamento do mundo, com a razão que guia os problemas, o norte de todo fracasso e êxito filosófico e científico, i. e, o sentido como o essencial na realização humana, pressupõe o encaminhamento de certas conquistas. Dirigindo-nos ao questionar como aquele gesto histórico fulcral responsável pelo surgimento de mentes como as de Tales, Anaximandro ou Parmênides, a ideia de uma autoadministração ou autoafirmação da instituição universitária deixará de soar como um anátema para ocupar um lugar absolutamente coerente com aquela reconquista do ser-aí de seu sentido: enraizamento pelo cultivo, arraigamento pela solidez, habitação pela construção, fundação pela dominação – sempre na senda daquela tensão entre comunhão e individuação, entre o eu e o nós.


Não basta que a essência da universidade enquanto autoafirmação ou do educar como enraizamento esteja teoricamente acessível. Não. É preciso um querer essencial, um querer em que se lança existencialmente em resolução.


O essencial no filosofar, disse o filósofo em Introdução à Metafísica  [2] não é descobrir, sem algum constrangimento após anos dedicados a erudição, que “com filosofia nada se pode fazer”, mas sua intencional correspondente a qual paciência e serenidade são requeridas: “acaso a filosofia também não poderá fazer alguma coisa CONOSCO, com tanto que nos abandonemos a ela?” Não há razão em propor que a autoadministração da universidade enquanto um querer ou vontade de ciência, possível pelo cultivo e enraizamento, deva ser meditada precisamente a partir do próprio professorado e estudantado envolto pela abertura desta questão, e não por qualquer outro imperativo material estranho ao destinar escolhido – enquanto um dever radical devidamente solidificado e esclarecido, de modo a, na melhor das hipóteses, guiar e tutelar a potenciação do espírito não apenas da própria instituição, mas de toda a comunidade?


E quê dizer desta interessante, conquanto aparentemente vaga ideia de preservar o espírito em sua potência? Quê Heidegger tem a dizer sobre espírito? O óbvio é que não há qualquer preposto metafísico no entendimento do então reitor. No sentido filosófico moderno, Geist concebe uma atitude ou disposição intelectual geral. O pensador entende o espírito num sentido mais vívido de chama, brilho ou fulgor, cujo sentido empregado se assemelha ao do latino spiritus enquanto vigor ou coragem. Similar a esta concepção caminha Kierkegaard que assim o demonstra:


A falta de espírito pode dizer absolutamente o mesmo que disse o espírito mais rico, só que não o diz pela força do espírito. Determinado como sem espírito, transforma-se o homem numa máquina falante, e não há nada que impeça que ele possa aprender de cor tão bem uma cantilena filosófica quanto uma confissão de fé e um recitativo político [3].


É importante reconhecer que o único modo – e aqui reside a beleza do discurso – de manter a ciência viva “para nós e através de nós” – muito ao contrário do que ainda hoje se crê quanto ao familiar preconceito da ausência de pressupostos e autossuficiência científicos – nos inteirando daquela “vontade de ciência”, é relembrando-lhe sua origem:


Toda a ciência é filosofia, quer ela o saiba e o queira quer não. Toda a ciência permanece presa a este início da filosofia. É a partir dele que ela cria a força de sua essência, posto que permaneça em geral à altura deste início.


Retomemos a ideia de propriedade e autenticidade abertas pela decisão de querer ser si-mesmo, que é, ao mesmo tempo, o chamado à universidade para decidir se ela quer ser si-mesma: basta coragem fogosa e simples esclarecimento histórico para tanto? Antes algo extraordinário deve acontecer, algo que provém do próprio ser-aí enquanto ser aberto a um mundo que o constitui – ser-no-mundo. Imediatamente, existindo ou sendo, ser-aí se compreende: se acha de certo modo, em algum lugar, com referência a alguém, às coisas, ao tempo. Heidegger define a abertura ao mundo em três momentos simultâneos: compreender, disposição e fala. Estão interpenetrados, interdependentes e indissociáveis, como são os traços característicos de todos os Existenciais identificados na analítica do ser-aí desenvolvida em Ser e tempo. A disposição revela o ser-aí enquanto um ente lançado no mundo que sempre “está assim ou assim”, “como isto ou aquilo” e que fundam todos os significados daí oriundos e posteriores como ânimo, humor, sentimento ou emoção. Ocorre que, de início, a disposição está na decadência e ambiguidade da cotidianidade mediana fática. Caso o ser-aí experimente uma crise existencial-ontológica em que os entes lhe aparecem, pela primeira vez, esvaziados de sentido e não mais lhe digam sobre usos, funções e referências em geral, se lhe torna então claro a si mesmo seu caráter finito, sua tarefa inadiável e insubstituível de ser si-mesmo; e tudo isto a um só tempo de modo perigoso e assustador em muitas vezes, conquanto em outras de modo libertador e repleto de paixão. A disposição desta crise profunda e experiência radical de liberdade para assumir o projeto da autenticidade é a angústia.


Há então, entre a grande tarefa da universidade, o enraizamento, a decisão pela unidade da ciência e o perigo da missão filosófica enquanto núcleo de concentração espiritual para os maiores empreendimentos acadêmicos, uma correspondência com a própria estrutura existencial do ser-aí, seu dever-ser, a libertação do emaranhamento tedioso do cotidiano, sua decisão pela propriedade de si e a angústia própria de alumiar o ignorado, o desconhecido, a face obscura dos fenômenos históricos, psicológicos, políticos, do mundo enfim? É nesta astúcia e disposição eminentemente gregas de um espírito que não nega sua proveniência que se faz ecoar a trágica conclusão de Antonio Machado: “Lutamos e perdemos ou lutamos mesmo que percamos? Andante, não há caminho, se caminha ao andar [4] ”.


Retornamos, por vias de demonstração, àquela magistral missão da universidade de guardiã da potenciação do espírito da comunidade. O questionar, enquanto vontade de ciência que se dispõe a angústia do possível pelo assumir do vigor histórico que retém o porvir, irá, é claro, repercutir num embate ou disputa entre duas grandes vontades: a docente, determinada ao avivamento da “simplicidade e vastidão do saber”, e a discente, voltada à “suprema clareza e cultivo do saber”. Este combate é o que proporcionará local para renascimento de toda “aptidão volitiva e pensante” das forças do coração. Esta noção é já própria da ideia de verdade em Heidegger como desocultamento, não como ato ou método, mas como um instante de descoberta ou disposição existencial de estar no aberto, que outra vez retoma a angústia e a coragem de decidir, em nada semelhantes ao ideário latino fático de veritas, mas ao sentido poético de habitar a verdade. Há um poema satírico de Drummond de Andrade que se nos prepara para esta nova conceituação de verdade, cujo eixo poético é a porta da verdade que, quando aberta, permitia a passagem apenas de “meia pessoa de cada vez”, ao que só meias verdades eram assimiladas e, portanto, levavam a grandes discórdias. Ao derrubarem a porta, descobre-se que o lugar das verdades era diviso em metades. E então a discussão passou a ser sobre qual a verdade mais bela, mantendo-se assim as separações entre as verdades: “E carecia optar. Cada um optou conforme/ seu capricho, sua ilusão, sua miopia [5] ”.


No fundo da questão do espírito, do perguntar e da autoafirmação, recai sobre nós a exortação magna do pensamento de Heidegger: “Tal acontecer ou não acontecer, depende apenas disto: se nós... ainda e novamente nos queremos a nós mesmos ou se já não nos queremos”. Somente mesmo quem nalgum momento, seja por espontâneo querer ou engenho do fado, abriu-se à pureza radical e angustiada, talvez até eremítica responsabilidade do educar em sua potência existencial, poderia desconfiar de tais cuidados tão preenchidos de gravidade, ousadia e amor.


O enraizamento como início que vem


E assim temos o ensino superior brasileiro reduzido à categoria de negócio rentável, nicho de mercado, investimento lucrativo – com seus desígnios, agora de modo muito mais destacado e grave, controlados por poderes externos a sua vontade. Para além das conclusões mais óbvias de decadência na excelência acadêmica e diminuição aguda na competência profissional, além do famigerado sucateamento dos campi públicos, o que fica claro desde o início deste querer fundamental que clamou pela primeira vez por um nível superior de educação, cultivo e busca espiritual no decorrer do século XIX é a ausência, seguida de tentativas inusitadamente frustradas, de delinear uma identidade para a universidade brasileira. Demonstremo-lo.


Na Monarquia: a imposição das imagens prefiguradas da Universidade de Coimbra, o modelo revolucionário napoleônico, o iluminismo, o positivismo, a rudimentar formação tecnicista, a dependência de mercado e tecnologia estrangeira e a forte intervenção do Estado durante o século XIX – século da formação da identidade nacional brasileira – e, em seguida, durante a República: o oferecimento de instituições privadas seculares profissionalizantes e confessionais católicas paulistas; a ênfase intelectual no saber desinteressado; a criação do Ministério da Educação que veio aumentar a intromissão estatal na administração das instituições; o ensino privado massificador e tecnicista; a criação das primeiras universidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília sem concepções claras para o sentido próprio da universidade brasileira e, no entanto, convictas e engajadas em luta e militância política que lhes deu força de oposição ao governo; o crescente interesse nos modelos norte-americanos de ensino superior; a criação da Lei de Diretrizes e Bases como um novo tentáculo a ser investido na determinação do ensino superior; os objetivos moralizantes e estruturalmente modelados a imagem norte-americana de ensino impostos pelos militares a partir de 1964; e, a partir dos anos 90: o avanço desenfreado até a legitimação pública das chamadas empresas educacionais com fins lucrativos; a fragmentação das faculdades e disciplinas pelo setor privado; a nova função credenciadora e avaliativa do Estado sobre as faculdades; a legitimação da privatização do saber acadêmico para fins econômicos empresariais; os programas de financiamento e inclusão das camadas menos favorecidas e a decadência na qualidade de ensino; e a transformação do ensino superior em um mercado bilionário fomentado por banqueiros estrangeiros, em síntese, são todos elementos constituintes da compreensão prévia que a partir de já devemos ter quando pensarmos esta abertura comunitária que é o dasein universitário. São sistemas, modelos, desejos, planificações, programas, ideologias, doutrinas, dogmas, princípios, projeções, especulações, que nada mais fazem que constranger e falsear a orientação do querer ser si-mesmo de uma instituição acadêmica no Brasil.


São estas apenas imagens grosseiras que regulam o possível em abertura para o corpo discente e docente de um agrupamento educacional. No mesmo instante que delimitam o que, quando e o como deve ser feito, encobrem o sentido original deste fazer. Pensam ideias como prática, ação, igualdade, acessibilidade, ciência e verdade com uma leviandade tal que denuncia o encobrimento de um grande porquê. É este o retrato da quebra da força espiritual do Ocidente aludida no discurso de Heidegger, já iniciada portanto no século passado e agravada pelo andamento de seus projetos cada vez mais distantes do desejo real do dasein enquanto indivíduo, enquanto instituição ou enquanto povo. É preciso decidir por esta vontade de ciência, história e cultura autêntica enquanto “[...] a aparência de cultura, na sua decrepitude, implode e atrai todas as forças em confusão, para as deixar asfixiarem-se na demência”.


A conquista da liberdade universitária é totalmente outra da que se costuma apregoar e defender à moda francesa e “unicamente negativa” que “significava antes de tudo: despreocupação, arbitrariedade de intenções e de inclinações, ausência de laços nos factos e nos gestos”. Para a liberdade que falamos aqui, é preciso o enraizamento no povo, a identificação de uma força e raiz populares, i. e., do espírito do povo brasileiro – Volksgeist – que dará a si mesmo o imperativo, a lei que é a liberdade mais refinada, porque antevista, escolhida e finalmente seguida. Heidegger fala em três fortes laços de enraizamento no povo por parte dos estudantes, que assim atualizamos: 1 – o laço à comunidade por meio do trabalho; 2 – o laço à honra e destino da nação por meio do serviço militar; 3 – o laço à missão espiritual do povo por meio do saber.


Em outras palavras, os jovens estudantes e professores brasileiros desta terceira década que vem, não foram consultados, em sua historicidade, sobre quaisquer destes traços vigentes na historiografia deste país – qual, com efeito, duvidamos se podemos chamar nosso. Não participaram, com mãos sobre o peito e em conjunto, de nenhuma destas resoluções democráticas atualmente aclamadas como genuínas da vontade nacional. Estamos, portanto, muito afastados, em nosso lugar histórico-espiritual das questões levantadas por Heidegger em seu discurso: “Sabemos deste encargo espiritual? Quer sim, quer não, a pergunta permanece inalterável: estaremos nós, professorado e estudantado desta alta escola, enraizados verdadeira e comunitariamente na essência da universidade alemã?”. Entretanto este afastamento pressupõe um retorno. Um retorno ao sentido do ser brasileiro, que pode em muito superar as vontades e projetos estranhos que aqui se fizeram frutificar até a bestialidade da situação atual. Querer a autoafirmação e o enraizamento do ensino superior, não apenas no Brasil, mas brasileiro, se reflete no desejo de uma verdadeira comunidade popular e se distingue de uma fraternidade internacional ambígua e perversa. E isso é também estar em busca do que nos torna quem somos, em oposição ao que não somos. Se o início ainda é e palpita, que não nos falte espírito para agarrá-lo – seja o início grego ou o de nosso começo espiritual que, ao que tudo indica, ainda não se iniciou. Mas vem.


“Os dias declinam —

A nossa coragem cresce.

Chamas! Brilhai!

Corações! Incendiai-vos!

Sede firmes e exigentes no que exigis.

Permanecei lúcidos e seguros do que recusais”.


Martin Heidegger, Excerto de “Apelo aos estudantes”, 1933.


Referências


[1] ALIGHIERI, Dante. Purgatório. In: ALIGHIERI, Dante. Divina comédia. Trad. J. P. Xavier Pinheiro. São Paulo: Martin Claret, 2015. p. 189-350. XXXIII, 48.

[2] HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Trad. E. C. Leão. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.

[3] KIERKEGAARD, Sören. Caput III – Angústia como consequência deste pecado que consiste na ausência da consciência do pecado. In: KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia. Trad. Á. L. M. Valls. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 90-120.

[4] Cf. poema Caminante, no hay camino (Tradução livre).

[5] Cf. poema Verdade de C. D. de Andrade.

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