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BRASIL, UM PAÍS SEM ESPERANÇA? – O ENSAIO FINAL DE MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
Este é um manuscrito pouco conhecido de Mário Ferreira dos Santos, o grande filósofo brasileiro falecido em 1968. Elaborado a partir de 1964, buscava falar, principalmente, à mocidade brasileira, e tal pretensão justifica seu estilo vulgar, fácil, tão distinto de seu habitual. É conhecido que pretendia incluí-lo numa coleção de vulto que discorresse sobre a realidade política e social do Brasil e que intitularia de “Uma nova consciência”.
Lamentavelmente, manuscrito, obra e vida quedaram inacabados.
As seções iniciais do texto não dizem respeito ao Brasil e ao brasileiro, e, portanto, não interessam ao tema a que o autor se propôs ensaiar – demorou-se num discurso grandiloquente e escolástico sobre os progressos humanísticos modernos em termos generalíssimos e com acentos moralistas algo abstratos provavelmente porque intentara um tratado amplo e pormenorizado, não um ensaio.
Seu conteúdo, deve-se realçar, embora soe chocante aos mais sensíveis ou menos críticos, não está em desacordo com o todo de seu pensamento sociológico, sua visão educacional libertária e perspectiva política anarquista cristã. Sempre fora incisivo no que tange ao caráter brasileiro e sua inércia, ignorância, incultura e irresponsabilidade, nunca sem, entretanto, ressaltar suas qualidades, como a hospitalidade, a fé e a inventividade.
Nihil obstat, publico-o, com devidas correções, apenas o terço final do texto, que pode ser lido integralmente no sítio Mário Ferreira dos Santos – Filosofia Concreta.
J. O. Bilda,
Brusque, 30 de agosto de 2024.
BRASIL, UM PAÍS SEM ESPERANÇA?
O POSITIVO E O NEGATIVO EM NÓS
Ao estudar as duas formas defeituosas, ou melhor, as duas formas viciosas, que se colocam frente à esperança, vimos que uma delas se processa por defeito, que é a desesperança, e a outra se processa por excesso, que é a presunção.
Na presunção, vislumbra-se, sem dúvida, uma certa intemperança no esperar; tendo a esperança como objeto um bem árduo e possível, o homem pode alcançá-lo de duas maneiras: ou por suas próprias forças, ou, então, por virtude de outro, ou até pela intervenção divina. Em qualquer dos dois casos, pode dar-se um excesso de presunção, por confiar demasiadamente na própria virtude e nos meios de adquirir esse bem, quando, na verdade, ele excede a capacidade própria, e estende-se, assim, sujeito ao malogro, por julgar-se alcançável o que se coloca além das possibilidades, como há também presunção por intemperança no esperar um poder extraterreno que, apenas movido pela misericórdia, dê o bem desejado, sem que, na verdade, se tenham méritos, nem nada feito para consegui-lo.
Nós, brasileiros, padecemos sobretudo dessas duas presunções: da primeira em menor escala, mas da segunda em grande escala. Da primeira, porque ainda poderíamos estudá-la de um outro modo, como aquele que julga fácil atingir a determinados bens árduos e possíveis, mas nada faz para merecê-los; e da segunda por permanecer nessa expectativa passiva, demasiadamente otimista, mas vã, por faltarem os meios postos em ação, as providências, as promoções para obtê-lo, e aguardar que tudo, em nossa vida, se possa solucionar pela intervenção do poder de Deus.
Na expressão popular, perdoável pela sua ingenuidade, mas expressiva da nossa imprevidência “Deus é brasileiro”, julga-se que já nos cabe de direito, desde todo o sempre, que as coisas sucedam no país de modo a acobertar as nossas falhas, os nossos erros, os nossos desmazelos, e que o resultado final não seja a consequência normal das promoções por nós feitas, ou da desídia nossa, mas que seja um bem gratuito, dado pela divindade na sua misericórdia e na sua magnanimidade, apenas em consideração por sermos brasileiros.
E isso nos tem custado caro através dos tempos; não que preguemos a desesperança, mas o que não podemos defender é a expectativa passiva, é a desídia, é a covardia para enfrentar as consequências dos erros cometidos, é querer convencermo-nos de que basta apenas desejar uma coisa para possuí-la, e esquecemo-nos sempre de que tudo isso exige o emprego de meios e promoções, sem os quais não é possível atingir aquele final por nós anelado.
Nós, brasileiros, temos sido um povo imprevidente, um povo que não tem sabido organizar seu futuro; pior, que o tem desbaratado no seu presente, que tem consumido com antecedência os frutos do amanhã, que o tem comprometido pelos erros. Dirão: mas isso é apenas fruto da nossa ignorância, somos um povo de ignorantes, um povo que apresenta um dos mais altos índices de analfabetismo. Mas esquecemos de outro aspecto importantíssimo: provimos de raças imprevidentes, o índio era imprevidente, também o era o negro, e não primava pela previdência o próprio português. Era natural e normal que decorresse daí uma tendência à imprevidência e às presunções viciosas, pecados do nosso povo.
Temos tido, através dos tempos, elites que em alguns instantes puderam equiparar-se às mais elevadas elites do mundo. Mas não devemos esquecer que nunca fomos em toda a história governados pelo povo, nunca o povo brasileiro participou realmente da administração pública. Ela sempre esteve nas mãos das elites políticas, econômicas e intelectuais. Se há uma imprevidência do povo, também há uma imprevidência dessas elites, e elas poderiam ter tido uma melhor concepção da vida, porque tinham meios de conhecer e aprender com a história dos outros povos. Apenas uma parte da elite preocupou-se com o nosso destino. Outra parte preocupou-se apenas com os seus interesses e só preveniram o seu futuro e o estabeleceram com firmeza. Cuidaram do que lhes cabia apenas no âmbito pessoal e familiar ou do seu grupo, e esqueceram-se do âmbito coletivo. Esses homens, aproveitando-se da pobreza do nosso povo, pobreza intelectual sobretudo, guindaram-se aos altos postos, para contribuírem em desbaratar as grandes riquezas nacionais.
Note-se que toda essa imprevidência nacional não é produto de uma escolha livremente realizada; a imprevidência nacional é, sobretudo, um motivo, e decorre da riqueza da nossa terra, das grandes possibilidades que ela nos oferece, dos meios relativamente fáceis para a sobrevivência. O homem que vive nas zonas frígidas do hemisfério norte tem de ser previdente por uma necessidade de sobrevivência, porque as condições ambientais, circunstanciais, são-lhe tão adversas que, se não tomar as providências necessárias para enfrentá-las, não poderia perdurar. Mas o Brasil é rico, a nossa terra é dadivosa, nossos rios são piscosos, nossas matas ofereciam a caça fácil, as nossas árvores frutíferas surgiam por todos os campos, nosso clima era benigno, não estávamos ameaçados de catástrofes próprias das outras regiões do mundo; tudo para nós tornava a vida fácil. A imprevidência era uma decorrência normal de tudo isto, porque não havia mister preparar-se para longos invernos, para um inverno cujo controle escapava aos meios humanos. O nosso homem, com poucos meios técnicos, podia obter o alimento necessário para a sua manutenção, já que a conservação da sua vida não exigia tantos bens quantos exigem aqueles que moram nas zonas nórdicas e frias.
E não sabiam disso os nossos intelectuais, e não sabia disso a nossa elite? E não tinha a nossa elite de despertar no povo uma consciência sobre o amanhã? Não houve por acaso no Brasil homens de valor que ergueram sua voz e chamaram a atenção para esses aspectos? Por que esses homens falaram sozinhos, onde estava o coro para acompanhá-los, onde estavam os companheiros para segui-los? A nossa história é rica de homens de valor, que se podem colocar não só paralelamente aos maiores homens do mundo como até superá-los. Mas parte da nossa intelectualidade, educada em livros estrangeiros, e apenas valorizando autores estrangeiros, nada fez para despertar em nosso povo a consciência da sua verdadeira situação em face do mundo e do momento histórico em que vivia, e então o colocou no estado em que estamos, numa situação histórica para a qual não estamos devidamente preparados, e por isso hoje estamos sofrendo, no Brasil, de uma dissolução de ideias, de uma confusão que é sobretudo emanada ainda de certos intelectuais nossos que não conseguem formar uma consciência brasileira.
E tudo isso contribui para que continuemos pecando, e pecando por ignorância, e perseverando nos mesmos pecados, nos mesmos erros, presos à mesma presunção, crentes de que é possível surgir inesperadamente a solução, e como ela não surge, a nossa presunção está perdendo a sua força, e está ameaçando passar para a deficiência e atirar o nosso povo a cair na desesperança. Então iremos passar de um pecado para outro, iremos passar de um erro para outro. Pusemos demasiada esperança em homens que não estavam à altura dos acontecimentos, cujo malogro foi uma decepção tremenda para as multidões; pusemos demasiada esperança em soluções que eram apenas teoricamente, e aparentemente, bem fundadas, mas que não correspondiam à nossa realidade e por isso, na prática, transformaram-se em malogros espantosos.
Estamos nesta situação; estamos perdendo a presunção, sem dúvida, mas não estamos encontrando a verdadeira esperança. Estamos, sim, ameaçados de ser avassalados pela desesperança; portanto, os dois extremos não nos servem, nem a presunção nem o desespero, mas somente a esperança genuína, a esperança válida, a esperança bem fundada, a esperança justa, a esperança que é virtude e não pecado.
ANÁLISE DOS ASPECTOS POSITIVOS E NEGATIVOS
Uma análise dialética concreta do que consiste propriamente o povo brasileiro exige obra especial. No entanto, para o tema que esta obra aborda, basta que consideremos alguns aspectos suficientes para nos assegurar dados que nos permitam dar uma resposta à pergunta formulada.
Considerando o povo brasileiro pelos seus fatores emergentes, pela sua emergência, temos de considerá-lo na sua tectônica, que se divide em duas estruturas: a estrutura hilética, ou estrutura material do povo brasileiro, e a estrutura eidética, a formal. A primeira corresponde mais à matéria, no sentido amplo que lhe dava Aristóteles, e a segunda corresponde mais à forma, no mesmo sentido daquele filósofo. Ora, hileticamente, isto, é, na sua parte material, teríamos de considerar o povo brasileiro dentro dos seus aspectos etnológicos e examinar a constituição do nosso povo, que é heterogêneo. Temos um grande contingente de sangue índio do mais variado, o qual, também, por vez, revelava uma heterogeneidade na parte eidética, isto é, nas suas formas culturais; um grande contingente de sangue negro e um grande contingente, hoje o maior, de sangue branco. Podemos dizer que etnicamente o povo brasileiro revela uma grande heterogeneidade e conserva aderências de formas culturais próprias desses grupos étnicos que o formaram e que constituem uma verdadeira matéria para sofrer novas informações de caráter sociológico, de caráter histórico, de caráter jurídico etc. Eideticamente, nos seus aspectos formais, temos uma unidade inegavelmente dada ao brasileiro pelo português, uma forma unitária de certo modo homogênea, porque todo o Brasil é Brasil, ou como se diz popularmente: “tudo é Brasil”. E tudo é Brasil mesmo; e é uma grande verdade esta, porque encontramos, de norte a sul, de leste a oeste, uma certa homogeneidade eidética ou formal, embora encontremos variâncias etnológicas muito profundas. O português conseguiu dar a este país uma unidade que venceu e ultrapassou todas as peripécias e todos os perigos que a nossa história registra.
Temos de partir do seguinte: se etnologicamente temos um aspecto negativo, devido à heterogeneidade, e ainda à presença de aderências culturais heterogêneas de vários grupos culturais heterogêneos, contudo temos uma unidade eidética extraordinária, que devemos sobretudo à grandeza da obra portuguesa, que aqueles que a estudam mais profundamente poderão compreender. Como não nos cabe propriamente nesta obra fazer este estudo, registramos os seus resultados; mas se nos for possível faremos no futuro um estudo em profundidade desses aspectos, justificando esta nossa tese em relação aos fatores emergentes, ou chamadas causas intrínsecas, como o eram estudadas pelos filósofos medievalistas, e que não tem propriamente diferenças essenciais ante o que dissemos.
Quanto aos fatores extrínsecos, que são constituídos pelo ambiente circunstancial e pelo ambiente histórico, pela causa eficiente, pela causa final, que também constituem extrinsecamente um ser, vamos deixar de estudar a causa eficiente, porque não somos um povo autóctone. Quanto à causa final, isto é, para onde tendemos, o que desejamos, o que queremos, quais as nossas finalidades, é tema a ser estudado oportunamente. Mas o que nos interessa fundamentalmente são esses fatores predisponentes, ou essas causas extrínsecas, que são constituídas pelo ambiente circunstancial e pelo histórico-social.
Ora, se observarmos bem o ambiente circunstancial, temos de incluir o geográfico, o meteorológico, o ecológico, etc., tudo quanto se refere ao topos, ao lugar, ao ubi onde se dá o Brasil. Estudando esse aspecto, verificamos que ele oferece aspectos positivos e também negativos: por exemplo, positivos no referente a certas facilidades para o desenvolvimento da vida humana, para a sua manutenção, para a sua perpetuação, porque o Brasil é praticamente um território aproveitável de norte a sul, de este a oeste, é uma terra cheia de riquezas, é uma terra que oferece meios extraordinários para o desenvolvimento de um povo, mas também é uma terra que, pelas suas condições, torna a vida fácil, torna a vida não tão sujeita aos perigos, às intempéries e às oposições, que outras regiões do mundo nos mostram, o que não permite a formação de um espírito de previdência, que é fundamental para o desenvolvimento de um povo. Sabemos muito bem que os nossos índios não eram suficientemente previdentes, nem o foram os nossos negros, nem tampouco os portugueses que, embora tendo um grau de previdência maior, não tinham o suficiente para assegurar ao povo uma índole outra que a que tem. Também se considerarmos os fatores do ambiente circunstancial, verificamos que essa previdência não poderia ser estimulada, não poderia ser tão motivada quanto o deveria ser; daí certas deficiências, certos aspectos negativos que revelamos.
Quanto ao histórico-social, que seria a constituição do elemento étnico no seu aspecto social e sociológico, temos de compreender o seguinte: primeiro, recebemos na formação cultural e histórica do Brasil um contingente de povos que estavam em graus muito primários de cultura. Os nossos índios representavam graus de decadência de culturas superiores pré-colombianas; os negros, que vieram ao Brasil, na sua maioria vieram das regiões mais recuadas em cultura e técnica da África. O elemento português, que veio para o Brasil, não representava, do ponto de vista técnico e cultural, o mais alto que Portugal possuía; a maioria dos que vieram para o Brasil foram agricultores, marinheiros, na sua maior parte analfabetos, ignorantes, homens que tinham uma determinada capacidade, um determinado conhecimento, dentro de um setor muito restrito.
Tivemos realmente algumas grandes cabeças de Portugal que ajudaram muito na formação do Brasil colonial, que apresentou níveis extraordinariamente elevados de cultura, trazidas por elementos portugueses e alguns estrangeiros, mas não o suficiente para elevar a nossa grande massa que cada vez crescia, mas crescia em primitivismo, crescia em primarismo, de modo que a proporção de primarismo não diminuiu, e até em certos aspectos aumentou, porque o número que compunha as camadas superiores não cresceu em grau como devera, para que o país se tomasse, com o decorrer do tempo, um país culto, ou, pelo menos, em que a população tivesse um grau de técnica e de conhecimento e de prudência mais elevado para fazer uma compensação às deficiências que provinham de outras origens, e como naturalmente a presença das aderências culturais inferiores tinham de atuar no nosso histórico-social, o homem que surgiu, as novas gerações, encontraram um ambiente circunstancial que não era muito propício para o seu desenvolvimento. Tínhamos normalmente de permanecer como um país primitivo e, enquanto a Europa progredia a passos largos, não podíamos seguir o mesmo ritmo, pelo menos na sua generalidade, porque a grande massa, a parte hilética da nossa população, não estava à altura desse desenvolvimento, apesar de termos tido elites no Brasil comparáveis às elites europeias.
Fazendo agora uma espécie de combinação de todos esses fatores, vamos encontrar uma série de aspectos negativos no nosso povo que são provenientes destas condições; uma miséria praticamente original, porque esta parte étnica brasileira, que constituiu a sua estrutura hilética, não era possuidora da técnica nem de meios econômicos suficientes para um desenvolvimento posterior; e o Brasil é um país pobre, porque o nosso índio não tinha capitais, no sentido econômico, nem o nosso negro, nem o português, que veio para o Brasil, nem posteriormente o estrangeiro, que veio como emigrante. De maneira que o Brasil sempre se desenvolveu como um país carente de capitais, razão porque a sua economia tinha de sofrer certas restrições, certas deficiências, que outros povos não sofrem, porque esses povos, possuindo capitais acumulados através de gerações, podiam, aplicando-o à economia nova que surgia, atingir graus que nós não tínhamos possibilidade, porque não possuíamos reservas de capital para tanto, nem reservas técnicas, nem reservas administrativas; consequentemente, a pobreza, e até vamos dizer mesmo a miséria brasileira, tinha que ser acentuada e não podia deixar de ser; era uma das nossas condições. Por outro lado, tínhamos outras dificuldades graves, que perturbaram a adoção de métodos técnicos europeus: uma certa indisciplina por parte dos nossos índios e dos seus descendentes, porque sabemos que os nossos índios não têm o sentido do trabalho, da organização disciplinada na economia; o índio nunca poderia conceber uma ordenação de trabalho dentro de horários prefixados; gosta de fazer apenas o que lhe agrada; o negro, por sua vez, tremendamente sacrificado, sujeito às grandes explorações, experimentadas já na própria África, só considerou a liberdade no sentido da isenção de vínculos, apenas nesse aspecto genérico. Nunca sentiu a liberdade num sentido superior, como a capacidade de escolher entre futuros contingentes. Ele queria apenas libertar-se dessas algemas; mas quando se liberta dessas algemas, não é capaz de criar uma disciplina para si, ele não se organiza. Ele vai ter uma vida desorientada, desordenada e, em regra geral, cai não só como homem produtivo, como também na própria organização social. Dessa maneira o negro permanece na nossa cultura um tanto marginalizado, por razões sobretudo étnicas; e não ingressou ainda na cultura que temos, que é uma cultura europeia, de forma que ele não tem essa facilidade de se tornar um trabalhador, senão sob ameaça, porque, inegavelmente, é do espírito negro, como tivemos oportunidade de mostrar em nosso livro “A Invasão Vertical dos Bárbaros”, que não tenha uma concepção do trabalho em sentido livre, libertário, de libertação do homem, mas sempre o trabalho como uma pena, como um castigo, como a determinação de um poder superior, que o ordena a trabalhar para produzir para outro, de maneira que o trabalho é sempre olhado por ele como sinal de sua escravidão, de sua limitação, de sua falta de liberdade.
Esses dois elementos não se disciplinaram e os descendentes continuaram herdando esse espírito; de forma que, com esses elementos hiléticos, constituídos das raças negras, das raças índias, que formavam o Brasil, nós não conseguimos estabelecer tipos de homens disciplinados para o trabalho.
Tínhamos por outro lado o português que, com seu espírito de trabalho, ajudou a dar uma certa disciplina, sempre naturalmente inferiorizada, nunca alcançando aqueles níveis de coordenação e de estruturação desejada. Esses elementos representavam e representam ainda aspectos negativos, dentro da nossa vida social. Mas ninguém pode negar que, apesar de tudo isso, com esse elemento, o português conseguiu realizar na América obras grandiosas; quer dizer que esse elemento era disciplinável, apesar de todas as suas deficiências. Mas o que é mais notável, e eis aqui o aspecto positivo, e que mereceria um estudo todo especial, é a capacidade criadora, de autonomia, a capacidade inventiva para resolver problemas, que possui nossa gente, em que, com menor esforço, atinja os mesmos resultados. É um dos aspectos positivos, extraordinários do nosso povo, que tem de ser considerado. E nessa capacidade criadora o povo brasileiro precisa ser estimulado a criar, pois tem uma capacidade de improvisação e de criação estupenda, que nenhum outro povo tem; e é mister deixar que a iniciativa, não só particular como de grupo, se processe livremente, porque ela dá soluções espantosas.
Como consequência do que havíamos estudado, vendo a formação étnica do nosso povo, encontramos uma tendência à indisciplina, que é muito normal em nossa terra e é gerada por esse espírito que vem do índio e do negro, que não tem capacidade de disciplinamento próxima, senão remota. A disciplina tem de ser imposta e não é livremente escolhida, não surge espontaneamente. Eis um aspecto negativo, que, contudo, não é um defeito invencível e pode ser corrigido.
Outro aspecto para nós tremendamente benéfico, mas, também, tremendamente maléfico, tem sido o que é natural nas Américas: o enriquecimento fácil. Na Europa, alguém para chegar à fortuna e à riqueza, em geral, tem de acumular através de gerações e de muito esforço; na América as fortunas se faziam da noite para o dia. Tal possibilidade era um estímulo para atrair aventureiros de toda parte, ansiosos desta fortuna; era natural que, na formação étnica dos povos americanos, a presença do homem de tipo aventureiro, do homem que vinha “fazer a América”, tinha de ser muito grande. E esse homem, quando malogravam os seus sonhos e os seus ideais, sentia-se um frustrado, um postergado, um traído, e consequentemente um elemento pernicioso, perturbador, revoltado contra tudo. Esse elemento, em vez de esforçar-se em constituir um fator progressivo, tornava-se em geral um elemento que contribuía mais para a dissolução, inclusive para a propagação de ideias europeias dissolventes, que vinham perturbar e aumentar mais os nossos defeitos.
Ora, se considerarmos também essas condições que possuímos, é de compreender que a nossa política, desde o momento em que se fundamentasse, nas suas raízes, em bases populares, tinha de decair dos padrões elevados que apresentou, por exemplo, no fim do Segundo Império, e até no início da República, porque o nosso povo, dada a sua pobreza, a sua miséria, não só física como intelectual e também econômica, tinha de ser a presa fácil dos demagogos, e estes encontravam terreno fértil para semearem as suas ideias e até as suas promessas feitas sem a menor consideração e sem a maior possibilidade próxima de execução. Foram cometidos erros econômicos, muitos deles copiados de países estrangeiros, de condições totalmente diversas das nossas, que em vez de estimularem o desenvolvimento do país cortaram de um modo violento o próprio progresso da nação.
Considerando todos esses aspectos positivos e negativos, temos de prosseguir ainda mais, comparando uns com os outros, para podermos compreender que o estado em que se sente psiquicamente o nosso povo hoje é o de insegurança, que vai gestando uma desesperança, que vai marchar para o desespero, de consequências maléficas que decorrem de todo o povo desesperado.
RESPOSTA À PERGUNTA
Agora realmente já estamos aptos a oferecer uma resposta à pergunta “Brasil, um país sem esperança?” E nossa resposta tem de ter uma prévia explicação.
Em primeiro lugar, desde que o tema fundamental desta obra se cingiu à esperança humana, a esperança do homem quanto à conquista dos bens árduos e difíceis desta vida, teremos de dizer que o Brasil é um país que pode ser realmente um país de futuro melhor. É um país que ainda pode despontar na história, como uma grande nação. Tivemos três ou quatro grandes oportunidades históricas, que deixamos que se perdessem por imprevidência e incapacidade nossa.
Nesta obra queremos citar o exemplo de Mauá. Nada de mais grave, ponto crucial para nós, o momento mais importante da nossa história, porque Mauá foi o divisor de águas, foi o instante em que se abriram as portas do nosso destino. Se seguíssemos a linha recomendada por ele, se o tivéssemos compreendido, se tivéssemos seguido as suas lições, hoje seriamos a maior nação do mundo. No entanto, perdemos aquela oportunidade; outras vieram; se hão soubemos aproveitá-las, isso não impede que não se possa abrigar, em face dos aspectos positivos de que dispomos e dos negativos, que são vencíveis após as análises que fizemos, que não se possa abrigar, repetimos, uma esperança bem fundada, uma esperança que não é uma mera expectativa passiva, uma esperança que deve providenciar todas as promoções necessárias para que alcancemos uma situação melhor.
Há necessidade de que o povo brasileiro tome consciência mais nítida dos problemas nacionais, e não há outro caminho senão que ele se organize, para que tenha necessidade de estudar esses problemas e discuti-los, porque será nessas discussões, nessas assembleias populares, onde se debaterão esses temas, que ele a pouco e pouco irá conhecendo os problemas e também haverá possibilidade de se revelarem os valores genuínos do país.
A nossa conclusão, em suma, é a seguinte: podemos abrigar dentro de nós uma esperança com fundamentos reais e com exigências de promoções de caráter ativo. O que não podemos admitir nem desejar para este povo é a continuidade daquela confiança que era apenas uma expectativa passiva, que admitia a possibilidade de que as coisas acontecessem de modo benéfico, sem nada providenciar para que assim sucedesse; esta esperança deve ser, de uma vez por todas, descartada da nossa vida, porque ela somente nos prejudicou. Precisamos compreender que, para receber alguma coisa de bom, devemos merecer, e para merecer, devemos dar em troca muito da nossa atividade e da nossa boa vontade. Não basta apenas anelar, não basta apenas desejar, não basta apenas o querer. É necessário agir, é necessário uma práxis. Temos que criar uma práxis brasileira, que corresponda às nossas necessidades, e que possa fazer a cobertura completa de todas as nossas deficiências; e isso não pode deixar de ser senão por processos completamente diferentes e aparentemente falsos.
Vamos dar a seguir algumas soluções para o Brasil que podem ser aplicadas, por exemplo: dar à nossa democracia não mais o sentido representativo, mas sim o sentido de democracia direta e cooperacional com mandato imperativo. Muitos dirão: mas isso é impossível para um povo de ignorantes. Seria impossível para um povo de ignorantes, se quiséssemos que esta democracia direta e cooperacional funcionasse imediatamente. Mas, precisamente quando o povo for chamado à responsabilidade das coisas públicas, sentirá a necessidade de preocupar-se mais com o que acontece, preocupar-se mais em conhecer, preocupar-se mais em saber. Este caminho, que, pensamos, só pode ser seguido por um povo eminentemente culto, pode ser seguido por nós, e deve ser seguido, porque será o único campo de culturalização do nosso povo.
E o caminho é que cada um compreenda que tem uma responsabilidade com a coisa pública, que tem responsabilidade sobre o destino da nação; dos males que nos acontecem, somos todos responsáveis.
Estamos certos que muitos, ao lerem estas últimas páginas, se colocarão numa posição de inteira descrença sobre as possibilidades por nós apontadas. Julgarão que este caminho não se adequaria a um povo cujo índice de analfabetismo é tão alto, um povo que revela também uma incultura tão grande; que esta solução só seria admissível a povos já possuidores de um grau de cultura que os poderia guiar para se dirigirem a si mesmos com a máxima segurança. Mas pedimos ao leitor que assim pensar que medite bem sobre esta verdade prática, que foi salientada por todos os sábios: aprende-se alguma coisa fazendo; o povo aprende o seu civismo cultuando a vida social, a vida histórica, dá-se dentro do mundo da práxis, da prática, no mundo da ação, e tudo quanto se dá neste é pela ação que aprende, é pela ação que se adquire o conhecimento.
No mundo especulativo, sim, há necessidade apenas das deduções, da especulação, mas no mundo prático é diferente, e o a que nós nos referimos, o de que tratamos nesta obra é uma parte do mundo prático, e aqui há necessidade de pôr-se em ação; a criança não aprende a caminhar senão caminhando. Precisamos ensinar o povo brasileiro a caminhar, precisamos ensinar o povo brasileiro a ser um povo dirigente de si mesmo, e ele não poderá aprender a fazer isso senão fazendo; e é fazendo, e é errando, e é sofrendo, que ele vai aprender.
Portanto, nós afirmamos: Brasil, um povo sem esperança? Não. Um povo com esperança, mas com uma esperança ativa, com uma esperança que tem de ser posta em ação.
Podem muitos argumentar que essas soluções oferecidas sejam de impossível realização, e talvez não se venham a realizar não por uma impossibilidade intrínseca, mas porque não disponhamos de uma vontade resoluta para pô-las em execução. Esta possibilidade está incluída na ordem das nossas condições. Mas o que não podemos deixar de afirmar é que esta é a única solução que nos resta; sem ela, nos tornaremos um país sem esperança, porque não terá a seu favor nada de positivo que se ponha em ação para realizar o que deve ser feito em benefício do seu futuro. Neste caso, seria ingenuidade acreditar que seríamos capazes de colher aquilo que não foi de modo algum semeado.
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