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A "Germânia" de Tácito - Edição de J. O. Bilda (Segunda parte): Imagem

A "GERMÂNIA", DE TÁCITO - EDIÇÃO DE J. O. BILDA (SEGUNDA PARTE)

A "Germânia" de Tácito - Edição de J. O. Bilda (Segunda parte): Texto

Esta é a segunda parte da tradução de Maria C. A. L. S. de Andrade do clássico De origine et situ Germanorum ou simplesmente Germania de Cornélio Tácito de 98 d.C., que foi apresentada como uma dissertação à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) em 2011 e encontra-se disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP enquanto documento público em formato bilíngue, com longos acréscimos de notas explicativas, estudos comparativos e comentários anexos, os quais foram afastados na presente edição sem pretender qualquer prejuízo ao entendimento ou à exaustiva pesquisa da autora, com o zeloso propósito de primeiro contato com um imortal etno-historiográfico. Entretanto, com efeito, sugere-se a leitura integral da pesquisa da autora, de modo algum preterível.


As sentenças em negrito são de minha responsabilidade, bem como a revisão e as correções ortográficas a serem notadas no texto original. Notas explicativas foram acrescidas nos casos de necessidade.


Referência bibliográfica: ANDRADE, Maria Cecília Albernaz Lins Silva de. A Germania de Tácito: tradução e comentários. 2011. 118 f. Dissertação (Programa de Pós- Graduação em Letras Clássicas do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: <https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-20042012-114933/publico/2011_MariaCeciliaALSilvadeAndrade_VRev.pdf>. Acesso em: 02 jan. 2021.


J. O. Bilda

Brusque, 02 de janeiro de 2021.


GERMÂNIA

26. É desconhecida a prática da usura e o acúmulo de dinheiro por juros, por isso tal atitude é mais observada do que se fosse proibida. Os campos são, sucessivamente, ocupados por todos os agricultores, de acordo com a quantidade deles, e depois partilhados entre eles conforme a posição social. A extensão dos territórios facilita a partilha. Mudam de terreno ano a ano e ainda sobra campo a cultivar, pois não desgastam a fertilidade e a dimensão do solo pelo cultivo, já que plantam pomares, separam os prados e regam os vegetais. Exige-se da terra somente grãos, por essa razão, não dividem o próprio ano em tantas estações: inverno, primavera e verão têm significação e nomes, do outono ignoram igualmente a denominação e as vantagens.


27. Não há ostentação nos funerais. Cuidam apenas em cremar os corpos dos homens ilustres com a madeira adequada. Não alimentam as chamas da fogueira funerária com roupas ou perfumes; mas para cada um, suas armas, e ainda o cavalo de alguns é atirado ao fogo. Uma leiva forma o túmulo, pois rejeitam a difícil e trabalhosa homenagem dos monumentos como se fosse pesado para os defuntos. Rapidamente deixam de lado as lamentações e as lágrimas, vagarosamente, a dor e a tristeza. Às mulheres é decoroso chorar, aos homens, recordar.


Soubemos em geral estas coisas a respeito da origem e costumes de todos os germanos. Agora apresentarei os ritos e as convenções de cada povo, até que ponto diferem entre si, e quais nações migraram da Germânia para as Gálias.


28. O divino Júlio, o melhor dentre os escritores, relata que a posição dos gauleses, outrora era mais forte e certamente por isso é crível terem os gauleses passado para a Germânia. E quanto um rio opunha-se a que cada povo que se fortalecera ocupasse e trocasse de sítio, até então públicos e não divididos pelo poder dos reinos? Assim sendo, os helvécios habitaram a região entre a floresta Hercínia e os rios Reno e Meno, as terras para além as ocuparam os Boios, um e outro povos gauleses. O nome Boiemos permanece até hoje e atesta a antiga tradição do local embora tenham mudado seus moradores.


Mas se foram os araviscos que, provindos dos osos [nação de germanos], migraram para a Panônia ou se foram os osos que, provindos dos araviscos, migraram para a Germânia, não se sabe ao certo, já que até hoje utilizam o mesmo idioma e os mesmos princípios e costumes; porque outrora se igualavam em pobreza e liberdade e havia as mesmas coisas boas e más em ambas as margens do rio. Os trévoros e os nérvios são os primeiros a pretenderem com fervor a origem germânica, como se por esta relação sanguínea gloriosa eles se apartassem da semelhança e inação dos gauleses. Sem dúvida, povos germânicos habitam a margem do Reno: vangíones, tribocos e nêmetes. Nem mesmo os úbios, ainda que tenham merecido ser colônia romana e por vontade própria sejam chamados "agripinenses" devido ao nome de seu fundador, envergonham-se de sua origem; há muito tempo, atravessam o Reno e, após provarem sua fidelidade, foram estabelecidos sobre a margem desse rio, não para serem observados, mas para que impedissem a passagem.


29. De todos estes povos, os mais corajosos são os batavos, que não ocupam grande extensão da margem, mas habitam uma ilha do rio Reno. Antigamente, eram uma população dos catos e por causa de uma guerra civil passaram a esses sítios, onde se tornariam parte do Império Romano. Permanecem a honra e a insígnia da antiga aliança, então eles não são rebaixados com tributos nem são oprimidos pelo cobrador de impostos; são isentos de encargos ou contribuições e poupados para o uso em batalhas somente: do mesmo modo que armas e armamento são reservados às guerras. O povo matíaco desfruta do mesmo benefício, pois a grandeza da população romana propagou a reverência ao império para além do Reno e para além das vetustas fronteiras. Assim, em sua própria margem está seu assentamento e território, mas estão conosco em mente e espírito; no mais são similares aos batavos, sem contar que em sua terra recebem maior disposição do solo e do clima.


Não enumerarei dentre as populações da Germânia, embora tenham se assentado além do Reno e do Danúbio, aqueles que cultivam campos decimados. Os mais ágeis gauleses, levados pela temerária pobreza, ocuparam o solo cuja propriedade era incerta; logo depois, com os limites traçados e os postos de defesa movidos adiante, estas terras foram consideradas a extremidade do Império e parte de uma província.


30. Para além destes povos, os catos[6] começam seu assentamento a partir da floresta Hercínia e o local não é tão amplo ou pantanoso como as outras Cidades que compõem a Germânia. Se, contudo, as colinas se estendem, paulatinamente se rarefazem, e a floresta Hercínia acompanha seus catos e os deixa apenas ao final de seu assentamento. Esta gente possui corpos mais robustos, membros trabalhados, feição ameaçadora e maior vigor de espírito. Eles têm grande raciocínio e sagacidade, que os destaca dentre os germanos: elegem homens excelentes, ouvem os eleitos, sabem sua posição hierárquica, reconhecem as oportunidades, retardam o ataque, organizam-se durante o dia, entrincheiram-se à noite, incluem a sorte dentre as coisas incertas e a coragem dentre as coisas certas e – algo raríssimo e somente concedido à disciplina romana – confiam mais no comandante que no exército. Todo poder militar está na infantaria, que além de armas, carrega também utensílios de ferro e provisões: os outros povos, vês irem para a batalha, os catos vão para a guerra. A incursão e a luta casual são raras. De certo, é próprio da força equestre alcançar rapidamente a vitória e rapidamente retirar-se: a celeridade está muito próxima ao medo, já a demora é ligada à firmeza.


31. A prática empregada poucas vezes por outras populações dos germanos, e pela ousadia individual, tornou-se um consenso entre os catos: deixar o cabelo e a barba crescerem logo que se tornassem rapazes e não tirar a vestimenta do rosto, devotada e prometida à coragem, até que tivessem matado o inimigo. Sobre sangue e espólios revelam sua face, só então eles mostram que mereceram ter nascido e que são dignos da pátria e de seus familiares: junto aos pusilânimes e covardes permanece a miséria. Além disso, os mais valentes usam um anel de ferro (o que é ignominioso para este povo) como se fosse um grilhão, até o momento em que a morte de um inimigo o liberta. Este aspecto agrada à maioria dos catos, e mesmo com os cabelos embranquecendo ainda portam as insígnias que os revela tanto aos inimigos quanto aos amigos. É com estes homens que toda batalha tem início: são sempre a linha de frente do exército, imagem surpreendente. Pois nem na paz se abrandam com um semblante mais tranquilo. Não possuem casa, campo ou outra preocupação; em cada lugar que vão recebem comida, são pródigos com os bens alheios, indiferentes com os seus, até que a débil velhice os torne incapazes de tão aguerrido ânimo.


32. Os usípios e os tencteros habitam próximo aos catos, às margens do Reno, cujo leito seguro já basta como fronteira. Os tencteros, mais do que é ordinariamente ilustre nas guerras, são excelentes na arte da disciplina equestre. O mérito da infantaria dos catos não é maior que o da cavalaria dos tencteros. Desta forma instituíram os antigos, seus descendentes os imitam. Estas são as brincadeiras das crianças, a emulação dos jovens, e os idosos continuam a fazê-lo. Os cavalos são legados aos escravos, à família e aos herdeiros por direito; diferentemente de outras coisas, essa herança quem a recebe não é o filho mais velho e sim aquele que for mais apto e intrépido na guerra.


33. Os brúteros outrora vieram para perto dos tencteros. Conta-se que os camavos e os angrivários imigraram há pouco, após os brúteros terem sido completamente arruinados e expulsos por uma união entre as nações vizinhas, seja pela aversão a sua soberba, seja pelo atrativo dos despojos, seja por um certo favorecimento dos deuses para conosco, porque certamente não invejam a visão da batalha. Mais de sessenta mil morreram, não por armas ou lanças romanas mas para o deleite de nossos olhos, o que é magnífico. Eu rogo que esta situação permaneça e se prolongue entre os povos, se não por amizade a nós, seguramente por ódio a eles; quando os destinos do Império o ameaçam, a Fortuna já não pode oferecer nada melhor que a discórdia entre os inimigos.


34. Os angrivários e os camavos são cercados pelos dulgúbnios, pelos casuários e por outros povos não tão célebres ao sul e são sucedidos pelos frísios ao norte. Os frísios são chamados maiores ou menores à proporção de suas forças. Estes dois povos têm o Reno por limite até o oceano e ainda cercam os imensos lagos antes navegados por naus romanas. Foi por ali que tentamos chegar ao oceano. Espalhou-se o boato de que até hoje existem colunas de Hércules lá, seja porque Hércules visitou o local, seja porque concordamos em atribuir à sua celebridade tudo aquilo que encontramos de magnífico em qualquer lugar. Não que tenha faltado ousadia a Druso Germânico, mas o Oceano impediu que investigassem a ele e a Hércules. Então, ninguém mais tentou, pois perceberam que era mais virtuoso e reverente crer nas ações dos deuses a compreendê-las.


35. Até este ponto nós tomamos conhecimento do ocidente da Germânia; mas esta se volta ao norte com uma grande inflexão. E logo em primeiro lugar encontramos os caúcos[7], que embora principiem após os frísios e ocupem uma parte do litoral, estendem-se pela lateral de todos os povos dos quais tratei até que fazem uma curva em direção aos catos. Os caúcos não apenas são proprietários de um vasto território, mas também o povoam. Eles são a mais nobre população dentre os germanos, que prefere manter sua grandeza pela justiça. Não são cobiçosos nem soberbos; tranquilos e afastados, não provocam guerras, não causam devastação com raptos ou latrocínios. A principal prova de sua coragem e força é que não obtém por meio de injustiças o título de superiores. Há armas preparadas para todos e inclusive, se a situação exigir, um exército muitíssimo numeroso em homens e cavalos; e eles conservam a mesma fama mesmo vivendo em paz.


36. Ao flanco dos caúcos e dos catos há os queruscos, que por muito tempo não foram atacados e desenvolveram uma paz ociosa e desmedida. E isto foi mais por deleite que por segurança, pois em meio a povos violentos e fortes, perderás tempo descansando. Onde se vive pelo poder, moderação e probidade compõem a reputação do mais poderoso. Assim, os queruscos, que outrora eram chamados de bons e justos, agora são os tolos e fracos: para os vitoriosos catos a sorte contou por sabedoria. Os fosos, povo vizinho, foram arrastados pela destruição dos queruscos, com eles agora dividem igualmente as adversidades, ainda que tenham sido inferiores em épocas ditosas.


Os cimbros habitam o mesmo golfo da Germânia, próximo ao Oceano; a Cidade é pequena agora, mas de grande glória. Ainda permanecem amplos vestígios da antiga fama: espaçosos acampamentos em ambas margens do rio, cujo perímetro dá hoje a você a medida da multidão e força deste povo e convencem de tão grande êxito. Nossa cidade[5] contava seiscentos e quarenta anos quando pela primeira vez ouviu-se falar do exército cimbro, sob o consulado de Cecílio Metelo e Papírio Carbão. Se calcularmos a partir daí até o segundo consulado do imperador Trajano, reuniremos cerca de duzentos e dez anos: tanto tempo para vencer a Germânia. Durante tão longo espaço de tempo muitos foram os prejuízos a ambas as partes. Nem os samnitas, nem os cartagineses, nem os hispanos, nem os gauleses, nem os partos nos deram mais lições, pois que a liberdade dos germanos mostrou-se mais dura que a tirania de Arsaces[8]. Além da morte de Crasso, o que mais nos apresentaria o oriente, depois de este mesmo ter perdido Pácoro e ter sido subjugado por Ventídio? Já os germanos, tendo derrubado ou aprisionado Carbão, Cássio, Aurélio Escauro, Servílio Cepião e Máximo Málio, tiraram cinco exércitos consulares do povo romano de uma só vez e destruíram ainda Varo e com ele três legiões de César. Não foi impunemente que C. Mário os derrotou na Itália, o divino Júlio nas Gálias e Druso, Nero e Germânico em sua própria casa. A grande ameaça de Caio César logo se transformou em zombaria. Desde então houve paz, até que por ocasião de nossa discórdia e dos confrontos civis tomaram de assalto os quartéis de inverno das legiões e buscaram apoderar-se das Gálias; mas em seguida foram expulsos dali e nos últimos tempos tivemos mais triunfos que vitórias sobre eles.


37. Agora se deve tratar dos suevos, que não compõem um povo uno como os catos ou os tencteros. Com efeito, eles ocupam a maior parte da Germânia, mas ainda são separados em nações com nomes próprios, embora geralmente os chamem de suevos. É característica deste povo por os cabelos para o lado e amarrá-los com um nó; desta forma distinguem-se os suevos dos demais germanos e os suevos livres dos escravos. Em outros povos, quer por haver alguma relação com os suevos quer por imitação (o que sói ocorrer), esse costume é raro e próprio da juventude. Entre os suevos, até na velhice os cabelos eriçados são colocados para trás e com frequência presos na própria cabeça. Os líderes trazem mais ornatos. Estes são os cuidados com a aparência, todavia inocentes. O motivo não é para que amem ou sejam amados, mas para, ornadamente, prover àqueles que vão à guerra de uma imagem de certa estatura e aterrorizante aos olhos do inimigo.


38. Os semnones dizem ser a nação mais antiga e nobre dos suevos; a certeza da antiguidade é assegurada pela religião. Em data marcada, “em uma floresta sagrada pelas previsões dos antepassados e prisco terror”, reúnem-se todas as populações de mesmo nome e sangue por meio de seus embaixadores e, depois de matarem um homem publicamente, celebram as horrendas origens do bárbaro ritual. E há outra reverência ao bosque sagrado: ninguém ali adentra a não ser que atado por um liame, mostrando-se inferior ante ao poder da divindade. Se por acaso caírem, não é permitido que sejam erguidos ou se ponham de pé, devem sair rastejando. Toda a superstição volta-se para o seguinte: como foi lá que se originou o povo, é lá que está o deus soberano de todas as coisas; os demais devem ser subordinados a ele e obedientes. A ventura dos semnones adiciona autoridade à crença; eles habitam em uma porção de aldeias e tão grande corporação os faz crer que são os cabeças dentre os suevos.


39. Os langobardos, ao contrário, enobrecem-se por serem poucos. Rodeados por nações muito numerosas e valentes, eles não estão a salvo graças à submissão e sim às batalhas, e por exporem-se ao perigo.


A seguir vêm os reudignos, os aviões, os anglos, os varinos, os eudoses, os suardones e os nuítones, todos estes fortificados com rios ou florestas. Nenhum destes é particularmente notável, exceto pelo culto comum a Nerto, a mãe terra, que pode, segundo creem, intervir em questões humanas e investir contra as populações. Em uma ilha do Oceano há um bosque sagrado e lá existe um carro consagrado, coberto por um véu; apenas um sacerdote pode tocá-lo. Ele percebe a presença da deusa em seu santuário e acompanha com muita veneração, ela ser transportada por vacas. Então os dias são felizes, há festividades em todo lugar que ela julga digno para ir e hospedar-se. Eles não vão a guerras e não pegam em armas, todas as espadas são guardadas. Só neste momento a paz e o sossego são conhecidos e amados; até que o mesmo sacerdote leve de volta ao seu templo a deusa, já saciada do convívio com os mortais. Logo depois, o carro, o véu e, se você quiser acreditar, a própria divindade são banhados em um lago secreto. Os escravos fazem o serviço e sem demora são engolidos pelo mesmo lago. Daí o misterioso terror e o santo desconhecimento  sobre o que acontece nesse rito, só assistido por aqueles que vão morrer.


40. Esta parte dos suevos estende-se pelos rincões mas remotos da Germânia. A mais próxima a nós – para seguir agora pelo Danúbio, como há pouco fiz com o Reno – é a Cidade dos hermúnduros, leal aos romanos; dos germanos, apenas com eles comercializamos não só às margens do rio, mas também ao longe, na esplendorosa colônia da província da Récia. Eles transitam para cá e para lá sem serem vigiados; e enquanto expomos aos outros povos tão somente nossas armas e fortes, a estes nós mostramos nossas casas e vilas, porque não as cobiçam. No território dos hermúnduros nasce o Elba, outrora um rio célebre e reconhecido, atualmente apenas conhecem-no de nome.


41. Perto dos hermúnduros vivem os naristos e, mais adiante, os marcomanos e os quados. A glória e a força dos marcomanos são notáveis, sua própria região foi obtida pela coragem quando, antigamente, expulsaram de lá os boios. Os naristos e os quados equiparam-se a eles, povos estes que são como a fronte da Germânia até onde o Danúbio a cerca. Os marcomanos e os quados, até os nossos dias, mantiveram-se reis de seus próprios povos, como as nobres famílias de Moroboduo e de Tudri (mas já admitem estrangeiros); a força e poder dos reis, entretanto, vem da consideração romana. Amiúde são ajudados por nosso dinheiro e raramente por nossas armas, nem por isso são menos valorosos.


42. Os marsignos, os gotinos, os osos e os búrios encerram-se às costas dos marcomanos e dos quados. Destes, os marsignos e os búrios parecem-se com os suevos na linguagem e nos costumes. A língua gaulesa dos gotinos e a língua panônia dos osos provam que eles não são germanos, por isso aturam os tributos. Parte dos tributos é imposta pelos sármatas e parte pelos quados, para quem eles são estrangeiros. Os gotinos ainda mineram ferro, o que é mais vergonhoso. Todas essas populações possuem poucas planícies, habitam então desfiladeiros e o topo das montanhas. Pois divide e separa a Suévia uma cadeia de montanhas, para além da qual vivem miríades de povos; dentre eles, o nome mais amplamente divulgado é o dos lígios, que se estendem por muitas Cidades. Bastará ter nomeado as mais fortes: os hários, os helveconas, os manimos, os helísios e os naarvalos. Entre os naarvalos apresenta-se um bosque sagrado de uma antiga religião: um sacerdote preside o ritual vestido de mulher, mas segundo a interpretação romana, referem-se ao culto aos deuses Castor e Pólux. Tal a natureza daquela divindade, cujo nome é Alcos. Não utilizam imagens e não há vestígio de nenhuma crença estrangeira; no entanto, essas duas divindades são veneradas como jovens irmãos. Quanto aos hários, além da força, que excede a das populações enumeradas pouco antes, eles são ferozes e aumentam seu aspecto selvagem por meio de artifícios e do momento certo. Os escudos são enegrecidos e os corpos pintados; escolhem noites sem lua para as batalhas e causam terror usando o próprio medo e as sombras deste exército funesto. Nenhum inimigo suporta a nova e, por assim dizer, infernal aparência.

Para além dos lígios, há o reinado dos gotões; seu soberano governa mais duramente que o dos outros povos germanos, mas não a ponto de suprimir a liberdade. Logo em seguida e ao lado do Oceano estão os rúgios e os lemóvios. São sinais distintivos de todos estes povos os escudos redondos, os gládios curtos e a obediência aos reis.


43. Adiante há as Cidades dos suíones[9], localizadas no próprio Oceano e vigorosas por seus homens, armas e, sobretudo, por suas frotas. A estrutura de seus navios é diferente da dos demais, porque existe proa em ambas as pontas, então a parte frontal está sempre preparada para o impulso. Não os dirigem à vela nem fixam remos em fileiras às laterais; seguem a velas soltas, como se faz em certos rios, mas o curso pode ser alterado para qualquer direção, conforme a ocasião exigir. Entre eles há consideração pela riqueza e um homem apenas manda, sem quaisquer restrições e com direito irrevogável à obediência. As armas não são carregadas em público, como se vê nos demais povos germanos, mas ficam trancadas e sob a proteção de um guarda, seguramente um escravo; porque o Oceano impede a súbita incursão do inimigo e, além disso, as mãos desocupadas dos homens armados facilmente cometem excessos; sem dúvida, não é útil ao rei armar um nobre, um homem livre ou mesmo um liberto.


44. Para lá dos suíones há outro mar, preguiçoso e quase imóvel, que rodeia e cerca o mundo; a prova disto é que o último brilho do sol ao se pôr continua claro até o nascer novamente do sol, de modo que ofusca as estrelas; a crença ainda acrescenta que é possível ouvir o barulho de quando ele emerge e ver as imagens dos cavalos e os raios de sua cabeça.

Tão somente até ali, e os boatos são verdadeiros, chega a natureza. Portanto, agora iremos para o litoral à direita do mar dos suevos, onde são banhados os povos éstios[10], cujos costumes e aparência são suevos, mas a linguagem é mais próxima à britânica. Eles veneram a mãe dos deuses. Como símbolo desta superstição, carregam imagens de javalis; isto substitui armas e a proteção dos homens, mantém seguro o adorador da deusa mesmo em meio a inimigos. O uso de espadas é raro, mas o de bastões é frequente. Cultivam grãos e outros frutos da terra mais pacientemente que pela costumeira inércia dos germanos. E também exploram o mar, são os únicos germanos a recolher o âmbar, chamado por eles de glesum, do fundo do mar e da própria praia. Com qual substância e por qual método cria-se esse material, eles não investigaram ou descobriram, já que são bárbaros. Porém, durante muito tempo ficou misturado aos outros resíduos marinhos, até que nossa luxúria o nomeou. Não possui utilidade para eles; recolhem-no bruto, trazem-no sem forma e admiram-se ao receber o pagamento. Você pode conceber que o âmbar seja produto da seiva das árvores, porque certos animais terrestres e mesmo voadores geralmente são encontrados no meio dela: pegados ao líquido, logo ficam presos à matéria endurecida. Eu poderia pensar, portanto, que assim como em recônditos locais do oriente são produzidos incensos e bálsamo, há nas ilhas e terras do ocidente florestas e bosques muito mais férteis, que são comprimidos e liquefeitos pelos raios do sol quando este se avizinha; essa seiva escorre até o mar mais próximo e, pela força das tempestades, é carregada às praias opostas. Se você testar as propriedades do âmbar levando-o ao fogo, verá que ele queima como uma tocha e desenvolve uma chama oleosa e odorífera; logo quando amolece transforma-se em pez ou resina. Os povos sítones confinam com os suíones. Em tudo o mais semelhantes, diferem deles apenas em um ponto: a mulher é quem manda; desta forma degenera-se não só a liberdade, como também a escravidão.


45. Aqui termina a Suévia. Estou em dúvida se referirei as nações dos peucenos, dos vênedos e dos fenos como germanos ou sármatas, embora os peucenos, chamados de bastarnas por alguns, sejam como os germanos na linguagem, aparência, por fixar moradia e pelo tipo de habitação. Todos são sujos e os chefes indolentes; por conta dos casamentos entre os povos, eles recebem alguma coisa do aspecto horrível dos sármatas. Os vênedos contraíram muitos de seus costumes; com seus assaltos, percorrem todas as florestas e montanhas que se elevam entre os peucenos e os fenos. No entanto, estes povos são preferencialmente mencionados como germanos, pois fixam domicílio, levam escudos e alegram-se por usarem os pés e pela velocidade da corrida. Em tudo isso diferem dos sármatas, que passam a vida andando de carro ou a cavalo. Os costumes selvagens dos fenos são espantosos e sua pobreza vergonhosa: não possuem armas, cavalos ou penates. Eles utilizam ervas como alimento, peles como vestes e o chão como leito. Sua única esperança reside nas flechas; na falta do ferro, fazem suas pontas com ossos. O mesmo tipo de caça alimenta igualmente homens e mulheres, pois elas os acompanham por toda parte e pedem um quinhão da presa. E não há outro abrigo contra as feras e as chuvas para as crianças a não ser a proteção de algum entrelaçamento de galhos; para lá voltam os jovens, lá é o refúgio dos velhos. Mas acreditam haver mais felicidade nisso que em gemer trabalhando nos campos, construir suas casas e ficar de olho, por esperança ou medo, em sua fortuna e na alheia. Tranquilos com relação aos homens, tranquilos com relação aos deuses, alcançaram algo dificílimo: eles não têm necessidade nem de fazer pedidos. Já o restante é fabuloso: que os helúsios e os oxiões têm rostos e expressões humanas, mas corpos e membros de feras; questão que eu deixarei em aberto, já que não foi esclarecida.

Notas:

[1] Lança curta, uma espada; estas ou outras denominações para essa arma tipicamente germânica poderiam ter sido usadas, mas por ser framea o nome germânico utilizado por Tácito no texto latino, seguido de sua definição, mantivemos a palavra framea todas as vezes que o objeto designado por esse termo é mencionado e também para destacar este vocábulo, um de apenas três que Tácito apresenta da linguagem dos germanos. N. da Tradutora.

[2] Civitas nesta passagem refere-se à organização social, podendo ser entendida como “Estado”, e por esta razão traduzimo-na como “Cidade”. N. da T.

[3] Neste caso civitas diz respeito aos próprios cidadãos e por isso foi traduzida por “cidadãos” e não por “Cidade”. N. da T.

[4] Este trecho retoma tanto as Metamorfoses de Ovídio, 14, 166 spinis conserto tegmine nullis, quanto a Eneida de Virgílio, 3, 594 consertum tegumen spinis. Ambos tratam de Aquemênidas, quem Odisseu deixa na terra dos Cíclopes. N. da T.

[5] Urbs é uma palavra utilizada em Germania apenas para designar a cidade de Roma. N. da T.

[6] Ou cáticos, chatti, eram uma tribo germânica que habitava a Baixa Saxônia meridional, ao longo do alto rio Weser. Os catos participaram da aliança de tribos germânicas que, sob a chefia de Armínio, derrotou as legiões romanas de Varo em 9, na Batalha da Floresta de Teutoburgo. Quando os romanos chegaram, foram localizados nas partes habitáveis mais altas, especialmente no leste e sul região dos Países Baixos, que residiam. N. do Editor.

[7] Do latino chauci, foram uma tribo germânica que habitou o extremo noroeste da costa da Alemanha, entre a Frísia a oeste e o rio Elba a leste. Seu nome vem do protogermânico xabukaz, “falcão” (em alemão: Habicht). Criavam gado, utilizavam cavalaria e praticaram pirataria. N. do E.

[8] Arsaces I da Pártia foi o fundador do Império Parta no Irã em 247 a.C. Ele é mais conhecido por fontes gregas e romanas, que lhe eram hostis e a sua dinastia devido às guerras romano-partas posteriores. N. do E.

[9] Do nórdico antigo Svíar para o latino Suiones, eram uma tribo germânica, composta por uma amálgama de grupos e clãs com diversos líderes, que viviam na Escandinávia, mas propriamente na Suécia. Mas adiante Tácito fará referência ao Mar da Noruega e ao antigo mito da Hiperbórea: “Para lá dos suíones há outro mar, preguiçoso e quase imóvel, que rodeia e cerca o mundo”. N. do E.

[10] Do latim: Aestii/Aesti refere-se a povos do extremo leste, atualmente região dos Estados do Báltico. Alguns relatos indicam que os éstios são os Antigos Prussianos, antigos habitantes da região que hoje compreende a Letônia e a Lituânia. No entanto esta hipótese não concorda com a descrição de Tácito. A hipótese mais concorde, por conta da presença do âmbar na região, identifica este como sendo o povo originário dos atuais estonianos ao lado dos lapões, falantes de idioma fínico e próximos aos finlandeses. N. do E.

A "Germânia" de Tácito - Edição de J. O. Bilda (Segunda parte): Texto
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