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A DOENÇA DO MUNDO EM CHRONO TRIGGER

A DOENÇA DO MUNDO [1]


São tempos difíceis, e, sentindo-nos atordoados, não raro ignoramos a qual direção olhar e em quais referências nos apoiar. Não é outra a razão da Filosofia, este templo da memória e do destino que não para de nos surpreender enquanto não obstarmos seus efeitos salutares sobre a ampliação da consciência. E um destes efeitos é a conclusão criticista de Schiller, da qual partimos como um pressuposto, de que a genuína experiência do Belo torna o homem livre e íntegro, arranca-o de um estado lastimável em que se deixa dominar por impulsos animais ou princípios artificiais, e torna-o artista, um potencial criador de possibilidades culturais e políticas. Afinal, não é esperando um Estado melhor, mas formando homens melhores que rumaremos à salvação. E, cientes dos limites da experiência humana e do caráter racional irrevogável da pesquisa filosófica e científica, concordamos com a tradição de Filosofia da História Universal de Kant, Herder e Hegel, cujo princípio fundamental, ou melhor, origem e destino, é a Razão: "quem vê racionalmente o mundo, o vê racional".


Mostraremos que política e história não falam apenas ao especialista e nem através somente de seus manuais. Podemos vê-las nos lugares mais improváveis, e um deles é o jogo eletrônico. No nosso caso, especificamente, é o jogo Chrono Trigger, onde, segundo julgamos, encontrar-se-á um tesouro lúdico de implicações políticas e culturais.


Chrono Trigger é um jogo de RPG eletrônico desenvolvido pela Square Co. lançado para Super Nintendo no Japão em março de 1995. O jogo foi revolucionário para a época e é considerado por muitos um dos melhores jogos já feitos na história dos eletrônicos – uma história que começa em 1972 com o Odyssey, inventado pelo engenheiro alemão Ralph Baer. O jogo foi desenvolvido por uma equipe de gênios apelidada de Equipe dos Sonhos, contando com Hironobu Sakaguchi (produtor da série Final Fantasy), Akira Toriyama (criador de mangás famosos como Dragon Ball), e outros célebres. No jogo há inúmeras referências a eventos e nomes históricos. A trilha sonora de Chrono Trigger é considerada uma obra-prima do gênero segundo literatura especializada e rendeu um CD triplo no Japão, sagrando-se uma das trilhas de videogames de maior sucesso da história.


Tendo causado estrondoso sucesso em seu lançamento – terceiro jogo mais vendido no Japão em 1995, ano em que recebeu mais de uma dezena de premiações de diferentes organizações avaliadoras por inúmeros critérios de excelência que seria prolixo citar –, foi incluído no Guinness Book como 32º videojogo mais influente na história em 2009, ficando atrás de clássicos consagrados como Tetris, Mario, Street Fighter, Sonic, Resident Evil e Final Fantasy. Mais adiante tudo ficará mais claro, porém agora cabe ressaltar: todos estes títulos foram lançados dezenas de vezes cada, em plataformas e gêneros diferentes com inúmeras continuações e versões no decorrer das décadas. Porquanto aí Chrono Trigger é uma obra peculiar: é único e irrepetível. Prova disto é que até hoje só ganhou reedições com sutis acréscimos e implementos gráficos, mantendo-se sempre um e o mesmo.


Treze anos depois, em janeiro de 2009, o jogo foi relançado em uma versão portátil com complementos ínfimos.


Junto a isto - e aqui se dá a primeira etapa de nossa análise - publicou-se um volumoso manual em japonês com mais de 600 páginas elaborado por integrantes do velho Time[2]. Ao preâmbulo do livro, lê-se:


O planeta estava doente.


No passado distante, na época em que os seres humanos eram jovens e tinham acabado de nascer da terra – a destruição estava sendo provocada por uma doença terrível, aninhada nas profundezas do planeta.


A doença incubada cresce por muitos e longos anos, escondendo-se, até acabar irrompendo da superfície num momento do futuro em que consumirá e destruirá o planeta, levando à extinção as muitas formas de vida que o próprio mundo deu à luz. Isso também significou o fim do planeta.


Neste dia de destruição, naquele mesmo instante, a terra teve um sonho. Relembrando e revivendo toda a história das criaturas na superfície diante de seus olhos como uma luz fugidia.


Virando as páginas de inúmeras épocas, sonhando e revivendo. A fim de preservar sua vida, procurando em suas memórias uma maneira de escapar do destino da morte.


Era a forma ideal de vida sujeita a uma morte irracional que tentava, inconscientemente, sobreviver.


E dentro deste sonho houve alguém que respondeu. Três jovens viviam em uma época 999 anos anterior ao dia da ruína. Por coincidência, descobrindo os meios de atravessar o tempo, eles conheceram o destino deste mundo envolto em desespero e estavam determinados.


Apesar de ser um futuro distante e com pouca conexão consigo mesmos, estavam decididos a salvá-lo da destruição. Viajando pelo tempo, mudando a história e concentrando a força das pessoas que vivem no planeta, eles buscam remover a doença que tem a vida do mundo nas mãos.


Assim, sobe a cortina de uma grande aventura de Crono e seus companheiros, que atravessa o espaço e o tempo entre cinco épocas ligadas pelo sonho do mundo.


Vamos mudar o futuro![3]


Tão somente a partir deste texto já nos seria possível antecipar alguns de nossos objetivos para com esta pesquisa. Não nos precipitemos, porém, e apreciemos a viagem. Mister é observar, em cada detalhe, o universal que fala enquanto se oculta. Aprender a ver o infinito no finito é uma das mais preciosas definições para o Belo que a filosofia já nos legou.


Como arqueólogos do saber, munidos do entendimento e sensibilidade que dão a possibilidade de alçar à princípios que se pretendem universais pelo reconhecimento recíproco de todas as pessoas na Razão, temos a tarefa de investigar, escavar e discernir entre os sentidos que descerramos para então, questionando-os em sua nudez, decidirmos quais deles são firmes, coesos e úteis para a fundamentação da existência e o desenvolvimento da civilização, e quais devem ser descartados e superados por sua moleza, arbitrariedade e fugacidade, incapazes de manter uma só pessoa de pé sobre suas asserções, quanto menos ousar prescrever fins gloriosos. É com este tipo de cuidado, tão exíguo em nossos dias de turbulência e ansiedade, que avançamos em nossas interpretações.


Estamos diante de um mundo doente, que sofre constantemente e que é incapaz de, por si mesmo, extirpar o mal que lhe compromete o próprio ser. Um mundo repleto de vidas em ebulição não pode ser um mundo sem consciência de si. Não é novidade, ainda que não seja frequente e popular, na história do pensamento, encontrarmos quem, como Spinoza ou Schelling, afirmasse um sistema cósmico monístico em que o mundo aparece como uma entidade senciente ou parte de uma substância universal racional. Isto foi um pressuposto da obra de um dos maiores filósofos de todos os tempos e, certamente o mais influente dos contemporâneos, Hegel. Tal ideia também esteve nas convicções e confissões de homens da ciência como Alexander von Humboldt, Isaac Newton e Charles Darwin.


O conceito de doença é imenso e problemático. No entanto limitar-nos-emos aos limites mais ou menos claros daquele prólogo, em que o tempo da narrativa é o de um futuro longínquo que lança um olhar retrospectivo sobre um longo processo de adoecimento que culmina na extinção da vida. A acepção em destaque é a naturalista ou médico-biológica e, segundo esta, doença implica incapacitação, limitação, perturbação numa dada ordem expectada, a que se chama natural. A doença em questão “aninhou-se” no planeta, nutriu-se, e então “irrompeu” na superfície, devastando o ecossistema. O planeta quer livrar-se para então salvar-se. Não se trata de algo que brotou espontaneamente com o desenvolver da vida, mas que se lhe obstou e cerceou o florescimento.


A virologia nos dá um parecer interessante. Reconhece-se o vírus através de seu fenômeno, isto é, sua manifestação: a virose. O vírus não faz parte da árvore filogenética ou árvore da vida. É o ente estranho por excelência. Não possui células e isto o torna um parasita obrigatório: invade e abriga-se no interior de seres celulares para reproduzir-se. Seu material genético sofre mutações. O homem carrega genomas virais como parte de seu corpo, traços de infecções ocorridas a milhares de anos. Seu crescimento e reprodução depende de seu sucesso em vencer a defesa do hospedeiro, o que lhe impede de ter vida passiva, pois corre risco de ser eliminado. Deste modo, para o vírus, é não apenas útil, mas necessário que avance até consumir a vida. E é precisamente este o caso em Chrono Trigger. Com pouca imaginação já o pudemos antever.


O planeta não pode vencer a doença e sucumbiu. A vida passou diante de seus olhos e num momento de desesperança clamou por ajuda às suas próprias criaturas. O jovem ruivo Crono, sem tal consciência, atendeu ao chamado quando a oportunidade lhe foi dada. Reúne um grupo composto de sete membros de cinco eras distintas, e emprega esforços em encaminhar este ser, a que em dado momento chamarão de ‘Entidade’ ou ‘Presença Maior’[4], à sua cura e pacificação: que aqui significa o expurgo do elemento estranho do seio da terra.


Quão sugestivo e rico, a título de metáfora, se alçarmos interpretações de maior alcance e pertinência que a nosológica para esta situação de conflito entre o autônomo e o parasitário, o próprio e o impróprio, o que se fundamenta em si e o que se funda no outro, o livre e o não-livre, o consciente e o não-consciente, o revelado e o dissimulado, o autêntico e o ilegítimo, o autóctone e o alienígena – e todos estes combates mortais estão para além da ingênua simplificação extramundana, isto é metafísica, das manifestações da vida, em bem e mal, como desvendou a psicologia filológica de Friedrich Nietzsche.


Reconhecemos aqui a face do mau, do perverso, do perturbador e do degenerescente por seus efeitos, por sua virose hepática. Pois o bom, o salutar, o revigorante e o duradouro, também se aproxima e se instala, a princípio, como um outro, um distinto e, porque não dizer, um estranho. Como diferenciá-los se, a princípio, ambos representam um mistério em si mesmos? Se ambos podem encantar com promessas brilhantes? Se ambos embelezam as aparências e excitam os apetites? A resposta já foi dada, e é tão simples e evidente que pode sequer ter sido percebida: os efeitos, os sintomas, o prognóstico, os meios e os fins. Para toda e qualquer situação, da medicina à religião, da pintura à política, da simples lei à civilização mais complexa, o método avaliativo justo e verdadeiro é aquele que pode ser praticado universalmente e que tem em vista não só a preservação, mas a exuberância; que não desdenha a vida para afirmar a morte, mas confirma e unifica carne e espírito sem jamais abandonar a esperança num futuro de eternidade.


Não há boas nem más sementes, bons ou maus ovos, como não há boas ou más doutrinas, bons ou maus costumes no seu ser. São o que são: uma possibilidade de grassar, chocar, concretizar e comungar. A experiência e a razão são o básico do conhecimento e ambas dependem da possibilidade. Para além disso, temos a crença. Mas mesmo a crença não brota no vazio. Suas raízes, por mais remotas que sejam, sempre se nutrem de um solo de revelações, sonhos, sentimentos e mistérios – numa palavra, experiência. E uma experiência que varia em sua intepretação muito mais que em sua qualidade, pois afinal temos sentidos limitados, mas imaginação ilimitada.


Portanto, julgar o adoecimento do mundo, é mais uma questão de observação e reflexão, operações excelentemente viabilizadas pelas ciências sociais e naturais com destaque para a história, biologia e parte da filosofia, que de lógica, dogmática ou cálculo, operações das ciências puras e da teologia geral que dispensam ou têm em pouca monta o campo da experiência. É lição antiga de Aristóteles que política não se trata de uma disciplina formal como a retórica ou o direito e nem é praticada pelos intelectuais que a abstraem, mas um saber prático e prudente, de todos o mais prestigioso, por homens de ação que tudo devem a uma ‘espécie de habilidade ou experiência’ e que ‘estudam a virtude acima de todas as coisas’[5]. Também Maquiavel chegou a esta conclusão quando empregou a analogia médica da tuberculose ao examinar a saúde do Estado – o mal é fácil de curar e difícil de reconhecer no início, mas caso avance sem o cuidado necessário que pressupõe um saber que chamou por ‘prudente’ e ‘sábio’ de um ‘cérebro excelentíssimo’ que ‘imita a trilha batida pelos grandes’, faz-se fácil de reconhecer e difícil de curar, até tornar-se irremediável[6].


Foi através de uma fantástica autoconsciência que o mundo por si mesmo reconheceu sua autodestruição. Mas isto se deu tarde demais: só lhe restavam recordações meio ao sofrimento. Relembrou de cinco períodos civilizacionais bem nítidos, marcados por alguma relação para com a doença. Uma aurora primitiva em 65 milhões a.C., quando o parasita chega à Terra e começa a disseminar seu código genético; um ápice civilizacional na Antiguidade seguido de catástrofe em 12 mil a.C. motivado por uma tentativa de cooperação com este ser irracional; uma guerra santa num medievo inculto em 600 d.C. que sequer sabe de sua existência, mas tem seu sono momentaneamente interrompido por um feiticeiro inconsequente; uma modernidade pacífica mas viciosa em 1000 d.C., a época dos jovens protagonistas; e o aniquilamento total num futuro tecnológico em 1999 d.C., que proporcionará ainda três séculos do lento extermínio humano em 2300 d.C., quando o parasita já concluiu seu ciclo, reproduzindo-se e migrando a outro planeta.


Naquele momento crítico, não importava mais nada que não fosse radicalmente humano, que não implicasse determinação, amor, coragem e esperança, que não significasse vigor, empatia e bravura, que não demonstrasse força, sabedoria e plenitude. A corrupção se espalhara irremediavelmente e seus frutos são bem conhecidos: ignorância, materialismo ético, economicismo, sensualismo, tecnicismo, supersticismo, e tudo o que aprisiona, vicia, deturpa, embota, mutila e separa o homem de si, dos outros, da história e do mundo. Onde encontrar homens e mulheres reais, saudáveis, de valor? Este foi o último clamor da Terra.


Felizmente, uma resposta veio. E veio num instante que conjugou possibilidade com valor. O possível dado pela circunstância histórica, e o valor dado pelo coração. Um acidente provocado por um antigo pingente que causou uma inusitada interferência magnética durante uma demonstração científica em um festejo. Acaso ou oportunidade? Já temos algumas indicações de resposta. Seja como for, é onde nossa aventura começa.


Se supores, leitor, como nós, que aquele prefácio condensa o núcleo filosófico, narrativo e político afirmado em Chrono Trigger, que irá, de um modo ou de outro, ressurgir na sua multiplicidade dramática tanto a nível individual entre personagens, quanto a nível social e político entre nações, então poderemos, traçando aqui nossa própria aventura intelectual, tornar esta obra prima imaginativa, no seu eixo fundamental, numa verdadeira manifestação lúdica dos princípios elementares que transformam uma cultura próspera numa civilização originária que tudo supera e a tudo fertiliza. Não é por outra razão que os dois capítulos subsequentes farão exaustivas descrições em crescendo do visível, material e particular ao invisível, espiritual e universal no transcorrer de personagens, cenários e ações pelos diversos quadros históricos, políticos e culturais presentes no jogo. Ademais, poderemos distinguir, por meio deste plano ilustrativo, a doença da cura, a nobreza do egoísmo, o belo e vigoroso do feio e decrépito, e o efêmero do eterno.


Vamos mudar o futuro!


Notas


[1] Este artigo é uma adaptação de capítulo do livro A Civilização Eterna. Cf. BILDA, J. O. O time dos sonhos. In: _____. A civilização eterna: um ensaio sobre os fundamentos político-culturais da literatura atlante a partir de Chrono Trigger. Brusque: Clube de Autores, 2020. pp. 21-30.


[2] Dream Team ou Time dos Sonhos, equipe que reuniu os melhores especialistas em desenvolvimento de jogos do Japão em 1994-95 especificamente para a produção de Chrono Trigger.


[3] SQUARE ENIX. Chrono Trigger Ultimania. Tóquio: Square Enix, 2009. Tradução minha.


[4] もっと大きな存在 (Motto ōkina sonzai), ‘ser maior’.


[5] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 6. ed. Trad. T. Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2014. I, 13, 1102a; X, 9, 1181a.


[6] MAQUIAVEL, N. O príncipe. 4. ed. Trad. H. Weber. Petrópolis: Vozes, 2013. III, p. 16; VI, p. 27; XXII, p. 104.

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